Artigo de colaborador
A hipocrisia da farsa armada brasileira
Quem é militar, seja da reserva ou da ativa, ou tenha sido militar, mesmo que por pouco tempo, sabe que a vida da caserna é uma vida à parte.
A comparação com a vida religiosa não é de todo imprópria, principalmente nos períodos de formação. Há um ambiente quase sagrado, mesmo que artificial, no ritual militar. A ordem, mesmo que superficial, é constante e por vezes motivo de obsessão. Mas o que realmente faz a diferença é o binômio hierarquia e disciplina. Tais institutos são como a assinatura genética do militar.
A relativização de qualquer um deles põe em xeque todo o edifício. O embaralhamento intencional entre esses dois conceitos e um neologismo batizado de “meritocracia” foi a espinha dorsal da farsa que os generais mercenários encenaram para justificar o canibalismo institucional que foi a Lei nº 13.954/19.
Os pretensos defensores da lei e da ordem foram os executores de uma violação sem precedentes à honra militar.
Carreira eminentemente estatal, a profissão das armas goza de um prestígio ímpar em qualquer sociedade. Alicerçada sobre princípios anteriores à própria civilização, a vida militar é almejada por muitos. No ocidente foram os romanos que sistematizaram a ciência da guerra e organizaram a vida militar. A partir de Roma pouca coisa foi realmente mudada. Um oásis de imutabilidade num mundo constantemente em mutação, quando tudo mais falha, quando nada mais resta, apela-se para a ultima racio.
O militar pode estar mais próximo do que qualquer outro da fragilidade da vida e da significância da morte. Para que isso seja uma vibração, mais do que palavras, existe a doutrina. E a doutrina, isto é, “o conjunto do que se utiliza para ensinar; a disciplina” — preconiza a honra e a lealdade acima de tudo. A disciplina é o resumo de tudo que é ordenado e hierarquizado naturalmente dentro da esfera da vida militar. A honra, o seu corolário. Apesar de todo esse romântico fundo pitoresco, é preciso admitir que desde a tríplice aliança latina o militar brasileiro é essencialmente um batedor de ponto, um soldado de papel. Salvo raras exceções, os brios não são mais tão lustrosos como antes…
Não é difícil imaginar que em 2019, o ministro Paulo Guedes tenha condicionado que um “sacrifício” fosse oferecido na sua missa negra neoliberal apelidada de “reforma previdenciária”, um sacrifício que justificasse inflar em 51% os salários de generais, almirantes e brigadeiros. Como desprezar a tropa nunca foi estranho a esses senhores, rasgar incômodos códigos antiquados e precipitar milhares de veteranos e pensionistas na lata do lixo da história não lhes pesou na consciência. Para costurar uma lei que afrontasse descaradamente a honra e a dignidade militares, de modo a comportar um acréscimo de R$15.000 aos próprios bolsos e, ao mesmo tempo, causar uma defasagem de quase R$2.000 aos veteranos da lacuna 2001-2019, bastou enxertar o novilinguismo “meritocracia” no PL 1.645 para que num passe de mágica se subvertesse toda a milenar ordem castrense.
Mas não existe tal coisa chamada “meritocracia” na vida militar. A hierarquia militar é, ela própria, o “poder do mérito”, isto é, manda quem pode, manda quem fez por merecer.
É assim a carreira militar. E ela, a hierarquia, palavra vazia em hipócritas bocas estreladas, abarca todos os militares, inclusive os da reserva e reformados, não apenas uns e outros escolhidos. Parece até que os generais bolsonaristas ungiram o Comandante Supremo um novo Vegetius, que, com poderes messiânicos criou uma nova “hierarquia pós-Bolsonaro”, como se antes dela, nada tivesse existido, e sobre ela edificou toda uma nova disciplina. Como se antes de Bolsonaro tudo tivesse sido um “fla-flu”. Como se tudo o que foi ensinado em séculos de vida militar tivesse sido, numa canetada, apagado.
O PL 1.645/19 falseou os fatos, maquiou os números, e, distorcendo a realidade, engendrou uma distopia paralela na qual a inversão de valores é a nova ordem do dia. Por que essa baderna? Talvez para justificar a escalada dos generais ao teto do funcionalismo público e compensar assim o atual mergulho das Forças Armadas no atoleiro moral que vemos agora. Não fosse a pressão dos praças veteranos em Brasília, somente os generais teriam acréscimo salarial. Segundo a “rosa das virtudes”¹ da Marinha do Brasil, “a disciplina tem um único inimigo verdadeiro, que é o egoísmo(…)”. Quem são os verdadeiros inimigos da família militar? Os que justamente indignados com essa traição da Lei do mal erguem sua voz, acima desse mar de ovelhas inermes que tenta sufocá-los, ou os comandantes egoístas que enfim revelaram que para o oficial general a ganância fala mais alto do que a lealdade para com a tropa?
JB REIS . REVISTA SOCIEDADE MILITAR
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