A Revista Sociedade Militar obteve acesso, por meio de fontes anônimas e canais oficiais, a diversos documentos restritos relacionados com uma tentativa das Forças Armadas de influenciar em um processo legislativo. Elaborados por setores do Exército Brasileiro dedicados a inteligência e monitoramento de mídias sociais, tudo indica que os relatórios tinham como objetivo principal gerar informações embasar ações para facilitar a aprovação de um projeto de lei de interesse da cúpula armada.
Extratos de alguns desses documentos foram publicados em artigos anteriores e alguns deles chamaram a atenção de políticos como Marcelo Freixo e Paulo Ramos. O ministro da defesa já respondeu a uma solicitação de informações gerada na mesa diretora da Câmara dos Deputados, mas não havia entregue cópias dos relatórios. Parlamentares e advogados ouvidos pela Revista Sociedade Militar destacaram que a ação pode se configurar como uma interferência irregular das Forças Armadas e – portanto – do poder Executivo, no trâmite de um processo legislativo.
Por meio de ferramentas de inteligência artificial para busca e análise na internet e mídias sociais, divisões do Exército Brasileiro, com destinação constitucional ligada à defesa nacional, aparentemente foram deslocados para monitorar os atores envolvidos no processo legislativo e gerar sugestões de ações estratégicas a serem empreendidas pelos setores de comunicação social do Ministério de Defesa, sempre com o objetivo de ampliar as chances de aprovação do projeto de lei 13.954 de 2019, conhecido como reestruturação das carreiras.
Em vários momentos o Exército identificou que havia na internet mais impressões negativas do que positivas em relação ao projeto de lei, o que indicava uma tendência de rejeição da proposta feita pelos comandos militares.
A mídia via de regra menciona a lei de reestruturação das carreiras como um benefício concedido para os militares das Forças Armadas como um todo. Poucos veículos conseguiram compreender a coisa toda e as consequências para a família militar. Estas até hoje – quase 2 anos após a sanção – geram manifestações de militares e pensionistas das Forças Armadas e Forças Auxiliares.
Das mais de duas dezenas de documentos de monitoramento elaborados pela Força Terrestre a Revista Sociedade Militar dispunha de 15 relatórios completos. Recebemos do Exército Brasileiro nessa quinta-feira (21/10/2021), após recurso impetrado na Controladoria Geral da União, uma cópia do lote completo, porém com várias tarjas pretas, que escondem informações sensíveis como identificação de canais na internet e dos militares e parlamentares proprietários de perfis monitorados.
Comparando com os documentos já de posse da revista, recebidos de fontes anônimas, foi possível identificar praticamente todas as pessoas, sites e perfis monitorados.
Os documentos citam, além de sites e blogs, personalidades consideradas como formadoras de opinião, como Luis Nassif e o repórter Robson Bonin da Revista Veja. Um dos relatórios obtidos menciona Marcelo Freixo como influenciador de massas radicais. O mesmo exemplar menciona outros parlamentares cariocas, como Taliria Perrone e Glauber Braga e celebra o fato de outros políticos como Sâmia Bomfim e Guilherme Boulos não terem se interessado pela pauta.
Trecho de um dos relatórios diz que “parlamentares do PSOL no país foram rastreados“.
“… No período, o PSOL através do Dep Marcelo Freixo, do Dep Glauber Braga e Dep Talira Petrone, parlamentares que publicaram em seus perfis no Twitter mensagens contra o PL apoiaram a manifestação realizada pelo Dep Glauber Braga, PSOLRJ, em plenário da Câmara dos Deputados no dia 09 OUT. Os parlamentares da bancada do Rio de Janeiro oriundos do partido em tela lideram a oposição ao PL e fortalecem em suas postagens a narrativa que afirma a posição do governo e do Ministério da Defesa em não se preocupar com as praças de baixa patente. Cabe ressaltar que o Dep Marcelo Freixo é um forte influenciador de massas radicais no Twitter e possui expressão com seus mais de 1 milhão de seguidores. Não foi verificado apoio de outros atores do PSOL que também são influentes nas redes sociais como a Dep Sâmia Bomfim, o Dep David Miranda e Guilherme Boulos…”
A operação de monitoramento se iniciou em 14 de agosto, início do funcionamento da comissão especial que aprovou o Pl1645 e terminou em 19 de novembro de 2019, quando foi apresentada a Redação Final do projeto aprovado na Câmara dos Deputados pelo Deputado Coronel Tadeu (PSL-SP).
Entre as centenas de dados coletados pelos relatórios de monitoramento, chama ainda a atenção o fato de o setor de inteligência ter cruzado dados de perfis os militares a ponto de identificar quais eram da Marinha do Brasil, mencionando-os em um relatório de agosto de 2019 como ativos na discussão e compartilhamento de informações que revelavam que o projeto de lei instituía “beneficiamento de oficiais de alta patente em detrimento das praças”.
Vejam algumas menções encontradas nos relatórios obtidos
O crescimento da Revista Sociedade Militar, que já alcançava mais de 1 milhão de leituras de artigos por mês, aparentemente também gerou preocupação
Um dos pareceres, construídos após o monitoramento e análise das informações coletadas, deixa bem claro que a força terrestre tentava interferir no processo legislativo.
A inteligência identificou que havia uma lacuna de comunicação entre as Forças Armadas e o público interno, que são os militares, e que isso permitia que os graduados que se opunham a forma como o projeto de lei se encontrava avançassem no que diz respeito às chances de modificar o projeto, fazendo com que – na sua visão – se tornasse mais justo.
Ainda que tenhamos obtido parte do material gerado, ainda tramita na CGU um pedido de informações que esclareçam de fato tudo que ocorreu, o que pode definir se de fato teria havido interferência entre os poderes e se as ações “clandestinas” das Forças Armadas acabaram influindo decisivamente para a aprovação do PL1645 de 2019. Se houve de fato interferência, isso – em tese – pode acabar gerando questionamentos sobre a legalidade da lei 13.954, norma sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2019.
Recurso impetrado contra resposta considerada incompleta da parte do Exército Brasileiro
” Bom dia Acreditamos que a resposta aos questionamentos deve ser de responsabilidade do Comando da Força, não há como cobrar de instituições subordinadas, por telefone, correspondência ou e-mail, sem que haja um registro formal das solicitações e sem o auxílio indispensável da CGU para moderar as discussões entre as partes. Tendo isso em vista, reitero as solicitações abaixo. A força, por exemplo, no que diz respeito à pergunta 6 não informou sobre a autenticidade ou não do relatório enviado em anexo e tampouco enviou ou explicou os motivos de não ter enviado copia dos 22 ou mais relatórios semelhantes elaborados sobre o mesmo tema. “6 – Comprovação da autenticidade do documento em anexo, denominado ACOMPANHAMENTO E ANÁLISE DO PL 1645 NAS MÍDIAS SOCIAIS relatório 023, bem como cópia dos 22 relatórios sobre o PL 1645 nas mídias sociais, caso existam.” Ainda que o Exército Brasileiro em sua resposta admita que realize ações de “social listening”, que foram “realizadas as análises intituladas ‘Acompanhamento e Análise do PL 1645 nas Mídias Sociais’ e que os dados coletados nesse tipo de ação são ostensivos, não forneceu os dados / respostas solicitadas entre os itens 2 e 5. “— 2 – Os relatórios internos feitos pelo CCOMSEx e setores de inteligência que tiveram como base dados gerados por ferramentas de monitoramento contratadas ou existentes na própria força sobre sites, redes sociais, perfis, blogs e mídias sociais em geral relacionados à tramitação do PL 1645/2019 — 3 – Acesso a listas com o nome, título e objetivo de todas as pesquisas e monitoramento em redes sociais e internet em geral contratadas pelo Exército Brasileiro em 2019 e 2020. — 4 – Relatórios e gráficos gerados pelo Exército Brasileiro utilizando o VTracker e o MLabs de março de 2019 a outubro de 2019 —- 5 – Relatórios, gráficos e documentos gerados pelo Exército Brasileiro com base em monitoramento de mídias sociais, sites, blogs e internet em geral que contenham os termos “PL 1645”,”PL1645” e “reestruturação das carreiras”. Agradeço antecipadamente pelo esforço em responder de forma completa às questões por nós colocadas.”
Robson Augusto / Revista Sociedade Militar
Abaixo cópia de relatórios – em pdf
Relatórios Monitoramento Exercito Pl1645 Redes Sociais e Revista Sociedade Militar by Sociedade Militar on Scribd