O Exército Brasileiro nunca se mostrou condescendente para com militares das baixas graduações que ousaram expressar a opinião sobre situações que afligem a categoria. Uma revisão histórica mostra que mesmo que a coisa chegue a beira do absurdo, como o valor de 16 centavos pago como salário família, ou a precária situação salarial dos militares em governos após FHC, que cassou direitos da categoria, se as denúncias não partirem da cúpula, de membros do alto escalão, dos generais, dificilmente serão aceitas e – pior – os autores, via de regra, são severamente sancionados.
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Só os generais podem falar
O JURISTA Barbosa Lima Sobrinho ainda nos anos 60 alertou a sociedade sobre esse comportamento singular da cúpula das Forças Armadas, que ao punir graduados que emitem opinião, não procedendo da mesma forma em relação aos generais que fazem a mesma coisa, comete uma grande injustiça. Disse: “Não há como entender, ou justificar, que generais possam ter direito a manifestações políticas e que o mesmo direito seja negado aos suboficiais, de modo a que sejam presos aqueles que pretenderam seguir os exemplos de seus superiores hierárquicos…” e
“(…) Se a tropa se convence de que, no plano político, os superiores gozam de um direito que é recusado aos sargentos, a conseqüência será … a formação de um sentimento de animosidade, de um conflito que, por não se manifestar de imediato, não será menos perigoso, como uma força latente de desagregação (…)” (B. LIMA SOBRINHO, in O Semanário, 23 a 39-5-1963, p.5)
A afirmação do jurista foi feita em 1963, mas se mostra de fato bastante atual. O general Hamilton Mourão, atual vice-presidente da república, ao criticar Dilma Rousseff há 3 anos, ainda na ativa, ainda que estivesse sujeito ao mesmo regulamento disciplinar, ao contrário de ser punido ganhou o cargo de Secretário de Finanças do Exército Brasileiro.
Outro militar, o general de divisão e ex-ministro Eduardo Pazuello, em episódio ocorrido em maio de 2021, junto com Jair Bolsonaro participou de ato político no Rio de Janeiro, ele também não foi punido.
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A Força colossal da instituição
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O sargento Vinicius Feliciano é um dos que sentiu na pele a colossal força da instituição Exército Brasileiro.
Indignado com a questão salarial, o militar planejou alguns atos simbólicos, entre eles Descer de rapel o vão central da Ponte Rio x Niterói e atravessar a Bahia de Guanabara algemado denunciando o valor do salário família. O sargento também pretendia, voando de parapente, passar com uma faixa em frente as praias do Rio de Janeiro denunciando a situação salarial dos militares, mas por conta da situação financeira acabou fazendo isso somente em Niterói.
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Ouvido pela Revista Sociedade Militar, Feliciano explicou que não conseguia entender como os comandantes das Forças Armadas permaneciam inertes diante de um governo que tentava desacreditá-los todo o tempo, subjugando toda a tropa a ponto de impor um salário família no valor de 16 centavos (R$ 0.16) por dependente e manter todos os militares por vários anos sem uma correção salarial que realmente recuperasse as perdas inflacionárias.
Como Bolsonaro, formado em educação física pelo Exército, além de graduado em História e pós-graduado em disciplinas da área econômica, o jovem militar não conseguia deixar de se indignar com os baixos salários da tropa e o pouco esforço da cúpula armadas de tentar solucionar os problemas das camadas mais na base das instituições militares
Enquanto membros das cúpulas das instituições militares estavam em situação confortável, desfrutando de imóveis funcionais e salários com o upgrade de diárias de viagem e cargos comissionados, a base da pirâmide hierárquica sofria com baixos salários e descontos acumulados de empréstimos consignados.
Uma pesquisa promovida pela Revista Sociedade Militar na época mostrou que grande parte dos militares contraia empréstimos com o objetivo de sanar dívidas.
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A história de Jair Bolsonaro vai na mesma linha da do sargento Vinícius Feliciano, tentativa do uso da mídia para denúncias contra privilégios para a cúpula e pretensão de mudar a situação usando a mídia para informar a sociedade sobre o que de fato acontecia. O caso Bolsonaro – quando se criou um herói, o chamado mito – foi um aprendizado para as Forças Armadas.
Ao contrário do que se fez com Jair Bolsonaro, as Forças Armadas não tentaram excluir o sargento Feliciano sumariamente, em 2013 já existiam redes sociais e a coisa poderia crescer muito. A estratégia adotada foi aplicar punições disciplinares severas, uma delas de 12 dias de cadeia, sem enviar a coisa para a justiça militar, de forma que não chamasse a atenção.
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Do governo federal, contra o qual protestou, o sargento não percebeu nenhuma retaliação. Mas, da parte do Exército o militar conta que a pressão era enorme, quase insuportável, todos os seus passos eram vigiados e que até um sapato arranhado poderia lhe render uma punição severa.
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Nas manifestações o sargento focava suas críticas na questão salarial. No protesto na PONTE carregava uma faixa com texto reclamando dos baixos salários pagos aos militares das Forças Armadas.
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Uma das frases mais usadas por ele em entrevistas era: “Ações comuns, resultados comuns. Ações extraordinárias, resultados extraordinários.”
Entrevistado pela RSM ele contou que uma das intenções era motivar outras pessoas a contar o que estava acontecendo, o aviltamento salarial que existia contra os militares: “Escolhi a ponte Rio-Niterói, planejei e executei. Mesmo sabendo da possibilidade de chuva, de acordo com a previsão do tempo, fui em frente assim mesmo, pois na infantaria, a chuva é nossa companheira. Na mesma manhã, caiu um prédio em São Paulo que matou mais de 200 pessoas e a chuva impediu que helicópteros das redes de TV fossem ao local e com esses dois fatos perdi espaço na mídia. Mesmo assim o assunto se espalhou pelos quartéis de todo o Brasil. Fiquei insatisfeito com o resultado, pois não houve mais mobilizações de militares em prol da questão salarial, como eu havia imaginado.”
Após todos os atos e seguidas punições, sem mais perspectivas de ascensão no Exército Brasileiro e se sentindo perseguido, o militar, cedendo a insistentes convites de amigos, em 2014 tentou uma cadeira de Deputado Estadual no Rio de Janeiro. Na época já estava claro que toda a família militar votaria em Bolsonaro para Deputado Federal, que era hegemônico. A tropa não abraçou sua causa, o então candidato Sargento Feliciano recebeu pouco mais de 1.900 votos, um resultado considerado excelente para um candidato de “primeira-viagem” e com o gasto de apenas 800 reais, cerca de 40 centavos por voto.
“Se houvesse investido 8 mil reais Feliciano receberia 20 mil votos e provavelmente teria sido eleito.. mas era o que ele tinha.”, diz um militar que acompanhou de perto a campanha do sargento.
Desanimado com as perspectivas apresentadas pelo Exército Brasileiro, reiteradamente punido e sofrendo perseguições constantes, acabou deixando a força terrestre. Feliciano hoje trabalha nos Estados Unidos, mora nas proximidades da Universidade de Harvard.
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O ex-sargento está escrevendo sobre esse e outros temas, em um livro ele pretende contar detalhes sobre como funcionam as coisas nas Forças Armadas Brasileiras no que diz respeito à direitos humanos, representação política, direito de expressão etc.