Hoje foi noticiado que em 10 anos foram enviados ao menos 4 relatórios às autoridades das regiões afetadas pelas fortes chuvas no litoral de São Paulo. Ministério Público, Unicamp, Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) alertaram sobre a situação de risco em várias encostas daquela região, segundo noticiou o jornal Folha de São Paulo.
Assim está descrito no editorial de hoje da Folha acerca dos avisos:
2013 – 10 anos antes da tragédia
Estudo da Unicamp sobre expansão das áreas de risco e com detalhamento dos perigos, como era o caso do litoral norte.
2018 – 5 anos antes da tragédia
Levantamento do IPT apontou 52 setores sujeitos a deslizamentos, entre eles a Vila Sahy (risco médio).
2020 – 3 anos antes da tragédia
Estudo contratado pelo Ministério Público concluiu que a manutenção do Sahy como estava era “uma verdadeira tragédia anunciada”.
2022 – 1 ano antes da tragédia
Proposta da CDHU, baseado em projeto do Mackenzie de 2015, defende deslocamento das famílias para terreno próximo, com financiamento do Governo Estadual.
Mas quais seriam as providências a se adotar? Seria viável que, por exemplo, poucos meses antes das eleições, as autoridades dessas regiões adotassem a postura do atual Governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que decretou a região da Vila Sahy como “utilidade pública para fins de desapropriação amigável”. Desta forma, o governador pretende impedir a construção de novas residências na localidade de risco, assim como garantir moradia provisória aos afetados pela tragédia, enquanto moradias definitivas serão construídas em lugares mais seguros.
Poder público.
Caso você tenha uma mínima noção do que é o Rio de Janeiro, então certamente deve ter percebido que as favelas só ampliam, seja em questão de tamanho, seja em número de habitantes e novas favelas.
Obviamente que o morador consciente não nutre esse amor utópico pela comunidade que a imprensa finge existir. O “glamour” da favela acaba com muita rapidez quando há conflitos armados, enchentes, deslizamentos, ausência de saneamento básico, entre outros dos muitos problemas dessas regiões pobres.
Então, já que é tão ruim, por que as pessoas insistem em morar nessas localidades pobres e sujeitas ao controle de milícias, tráfico e com pouco suporte governamental? Isso sem citar as prováveis tragédias que assistimos a cada período de chuvas.
Bem, parte da culpa dessa situação é das autoridades públicas que permitem e até mesmo incentivam o surgimento de novas comunidades em áreas de risco. Quando se diz “incentivam”, referimo-nos ao fato de que nada é feito para impedir o surgimento de favelas e comunidades em todos os estados do país. Aliás, assim que se estabelece uma comunidade carente, imediatamente contemplamos a implantação de energia elétrica, creches e até mesmo o comércio informal ganha vida. Isso dá uma nítida impressão de que o poder público prefere ser permissivo do que rígido, porém é fato que essa permissividade tem um alto preço a ser pago.
Um outro fator importantíssimo está na falta de zelo de boa parte dos moradores dessas áreas. Quando em regiões mais perigosas (como encostas e morros) é relativamente comum ver o despejo errado de lixo. Seja em São Sebastião (SP) ou na Tijuca (RJ), não é difícil ver toneladas de lixo descendo pelas encostas ou ruas das comunidades. Os esgotos a céu aberto também são preocupantes, principalmente quando nos deparamos com enxurradas e enchentes. Juntos, lixo e dejetos são problemas que provocam não apenas as enchentes e deslizamentos, mas também atuam no agravamento do quadro de saúde nessas regiões.
Facilidades.
É fato que culpar apenas o poder público não é correto. Muitas pessoas se mudam para comunidades ou colaboram com a criação delas para ter facilidades provenientes de uma estrutura local. As mais urbanizadas e populosas favelas do Rio de Janeiro são as que estão situadas em áreas urbanas, próximas do Centro e da Zona Sul, áreas onde boa parte das pessoas trabalha. O mesmo ocorre em incontáveis comunidades do país.
Em prol de uma relativa comodidade que inclua melhores escolas, transporte, redes de supermercados, creches, proximidade do trabalho, entre outros, milhões de cidadãos vivem em condições que oscilam entre razoáveis a precárias, mas têm acesso a benefícios que são mais difíceis ou não existem em subúrbios e áreas rurais.
Assim, na balança entre os prós e contras, muitos optam pelo risco… às vezes pagando um alto preço.
Medidas urgentes.
Há décadas que tomamos ciência de tragédias similares às do litoral paulista. Há décadas que contemplamos em silêncio o crescimento de favelas e o surgimento de outras em lugares cada vez mais perigosos. É óbvio que isso não é salutar, mas as mudanças não podem partir simplesmente do poder público.
Áreas de encostas, morros, próximas a rios… são vários os exemplos de tragédias anunciadas. Aparentemente a busca por um lugar para morar está acima da preocupação com a própria vida. Também é importante destacar que essas comunidades surgidas de forma descontrolada, sem o mínimo planejamento, visam aquilo que se tornou corriqueiro em estados como Rio de Janeiro e São Paulo: a ausência de cobrança por parte do Estado. Favelas e áreas mais pobres em todos os estados do Brasil são “isentas” de taxas e de fiscalização. Luz e água chegam a boa parte desses lugares, ainda que os fornecedores de tais serviços quase sempre sejam lesados pelos famosos “gatos”.
Ao morar em uma casa onde o aluguel é baixo ou inexistente, onde água e luz não sejam cobrados, perto de grandes centros, com toda uma infraestrutura que está acessível também a eles – além do óbvio aparato estatal que disponibiliza recursos que reforçam a vontade dos moradores em permanecer lá -, dificilmente teremos o fim dessas localidades, ainda que algumas estejam em constante risco.
Assim, seguindo aquilo proposto pelo governador do estado de São Paulo*, Tarcísio de Freitas, o ideal é desapropriar essas casas em localidades de risco e providenciar moradias decentes para essas pessoas. Claro que essas mudanças demandam tempo, negociações e vontade política, além da compreensão dos que residem nas favelas e áreas pobres que insistem em não sair de lá, por mais perigoso que seja.
E só para frisar, as construções em encostas e áreas sujeitas a deslizamentos não são exclusividade de pessoas pobres. Em Barra do Sahy há residências com valores na casa dos milhões que não tombaram diante das chuvas e deslizamentos que as atingiram. Barra do Sahy é o bairro que engloba a comunidade da Vila do Sahy, cabe ressaltar. Entretanto, tanto a Vila quanto a Barra são frutos da falta de fiscalização e da “vista grossa” de governos anteriores que, inclusive, desconsideraram os avisos sobre a tragédia que se anunciava.
E por falar em política, outro ponto que precisa ser reforçado é o da total cegueira que a maior parte dos políticos e governantes demonstram em tempos de eleição. Nos anos eleitorais podemos encontrar as mais absurdas promessas de melhorias na comunidade, além de benefícios pouco duradouros voltados apenas a cativar a simpatia dos moradores. Aliás, após o período eleitoral, geralmente esses moradores jamais verão a face desses políticos, exceto pelas mídias e redes sociais.
Conclusão.
Com vontade política e apoio popular, certamente as comunidades que mais estão sujeitas às tragédias poderão ser removidas e reestruturadas em outros lugares. É preciso atentar para as incontáveis tragédias que já atingiram outras localidades em situação similar, pois o tempo para a perda de vidas por motivos fúteis deve acabar.
É notório que políticos ainda têm medo de mexer com as pessoas nessas comunidades, assim como também é fácil perceber que isso tem um potencial destrutivo gigantesco. Ser uma autoridade é assumir riscos e buscar a preservação do maior bem que um cidadão tem: a própria vida.
Assistir outras tragédias pelos mesmos motivos de sempre é inaceitável. Vidas são perdidas todos os anos e isso já se tornou tão rotineiro ao ponto de vermos que as reportagens têm conteúdos quase idênticos. Não importa o prejuízo político ao adotar uma postura mais rigorosa. Não importa se os governos anteriores nada fizeram. O que realmente importa é a decência de políticos, magistrados e outras autoridades com poder para evitar novas mortes, novos desabrigados e a continuidade de um ciclo de dor e sofrimento que perdura há décadas.
Muito dinheiro foi gasto com futilidades. Bilhões de reais são investidos em todas as áreas. Logo, o que impede a colaboração de autoridades municipais, estaduais e federais para arquitetar a interrupção dessa onda de tragédias que evidencia o descaso dos poderosos pelos mais desafortunados? Até quando a imprensa noticiará a perda de vidas por causa da falta de coragem e investimento daqueles que deveriam primar pela melhoria da vida do cidadão, seja ele pobre ou rico?
*O governador Tarcísio de Freitas assinou nesta sexta-feira (24) decreto declarando de utilidade pública um terreno particular de 10.632 m² na Vila Sahy, na Barra do Sahy (São Sebastião) para fins desapropriação para construção de moradias destinadas a famílias desabrigadas e desalojadas em razão das chuvas que atingiram o Litoral Norte, no Carnaval. O decreto será publicado na edição deste sábado, 25, do Diário Oficial do Estado.