A França, por meio da Guiana Francesa, representa uma ameaça militar para o Brasil?
Entenda o histórico da relação conflituosa entre as Forças Armadas do Brasil, a desconhecida Guiana Brasileira e a Guiana Francesa, território ultramarino francês e membro da OTAN
Não é de hoje que existe temor e discussões sobre um possível conflito com uma potência europeia entre os militares. Fala-se mais especificamente sobre a França, potência nuclear, membro da OTAN e da União Europeia, com seu território ultramarino da Guiana Francesa, que já protagonizou alguns embates geopolíticos com o Brasil. Para compreender o contexto atual, é preciso entender primeiro as origens desse conflito bicentenário.
A descoberta e a divisão das Guianas
Um fato não tão conhecido é que o território denominado por muitos estudiosos hoje como Platô das Guianas foi batizado como “Guiana” por Cristóvão Colombo quando ele passou pelo norte amazônico da América do Sul de frente para a região caribenha. Pode-se dizer que Colombo costeou também o norte brasileiro bem antes de Cabral.
As Guianas foram uma região de particular interesse para os estudos de Élisée Reclus, historiador da natureza, apresentadas no primeiro capítulo do volume XIX, L’Amazonie et la Plata, da Nouvelle Geographie Universale, não só porque uma colônia francesa fora instalada nesse setentrião sul-americano, mas particularmente pela disputa territorial mantida entre a França e o Brasil, o denominado “Território Contestado”.
As Guianas, ou “a terra de muitas águas”, nome como eram conhecidas pelos povos nativos Carib desde a época da conquista, compreendiam uma extensa área costeira entre os deltas dos rios Orinoco e Amazonas, adentrando até as terras altas divisoras de água com a bacia amazônica. De fato, os pântanos e as terras alagadiças dos deltas, da costa e das planícies interiores, correspondem a uma vasta porção dessa extensa região. Um território explorado desde 1500 por Vicente Yáñez Pinzón, mas cujo primeiro mapa anônimo espanhol a mostrar com detalhes os deltas do Orinoco e do Essequibo (rio Dulce) remonta ao ano de 1556.
Ao longo de quatro séculos foram efetuadas diversas repartições políticas desse amplo território entre as nações conquistadoras, cada qual o denominando com seu adjetivo: Guiana Espanhola (depois Venezuelana), Britânica, Holandesa, Francesa, Portuguesa (depois Brasileira), seguindo a faixa costeira do Atlântico de oeste a leste. Atualmente, do ponto de vista geopolítico, essa antiga divisão configura-se relativamente estável: uma parte da área sob o antigo domínio espanhol a sudeste do rio Orinoco pertence politicamente à Venezuela constituindo a extensa região de Guayana; a antiga colônia britânica tornou-se um Estado independente em 1966 com o nome de República Cooperativa da Guiana; idem ocorreu com aquela holandesa em 1975, adotando o nome de Suriname; em 1946, a ex-colônia francesa tornou-se um departamento ultramarino; e a antiga Guiana Brasileira incluindo o “Território Contestado”, com a vitória brasileira sobre a França, ocorrida na arbitragem internacional em Berna, desde dezembro de 1900 foi incorporada ao atual Estado do Amapá.
A descrição física de todo o contorno geográfico do que se convencionou chamar de Guianas foi feita detalhadamente por Reclus, de oeste para leste, subindo o Orinoco, passando pelo Cassiquiare até o rio Negro e descendo-o até o rio Branco, de onde se sobe até o maciço de Roraima e atravessa-se novamente para o Essequibo, contornando o maciço das Guianas até os montes Tumucumaque, onde se alcançam as cabeceiras do Oiapoque, para então descê-lo até a costa.
Ao mesmo tempo, Reclus não abandona a exploração minuciosa do território, do relevo, das bacias hidrográficas, sem perder de mente a complexidade do lugar, o todo da “ilha fluvial” Guiana: uma vasta porção de terra envolvida entre dois grandes rios e a massa de água carregada de sedimentos despejada ao mar pelo Amazonas que, empurrada pelos alísios de nordeste, se encontrará bem mais ao norte com a do Orinoco ao largo da costa atlântica.
O extremo norte do Brasil é uma quarta Guiana? Uma vez que parte da região norte esteja dentro do espaço inscrito entre os cursos do Amazonas e do Orinoco, com certeza, e assim como vários estudiosos definiram, o Brasil tinha uma Guiana com esse nome e que mais tarde foi denominada Amapá. Mas, dentro do espaço geográfico do bioma acima definido como Guiana, se inserem ainda, além do Amapá, parte dos estados de Roraima, Pará e Amazonas. As Guianas são um bioma com características próprias dentro da Amazônia. Assim como a Amazônia se estende por vários estados e países, a caatinga por vários estados, o cerrado idem e os pampas por vários países, as Guianas também. Assim como o Amapá deixou de ser denominado de Guiana, o Suriname também, mas continuam sendo regiões do Platô das Guianas. Assim, dentro desse contexto, a Guiana brasileira existe da mesma forma que a Amazônia brasileira também existe como um bioma.
O Brasil se envolveu em dois conflitos com a França por causa de duas Guianas: a francesa e a brasileira. Portugal foi atacado pelo Imperador francês Napoleão, o que motivou a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808. Como retaliação, tropas portuguesas e brasileiras, com apoio naval inglês, atacaram a capital da Guiana Francesa, Caiena, forças terrestres e o desembarque da Brigada Real de Marinha (atual Corpo de Fuzileiros Navais ). Após a tomada da cidade, a 12 de janeiro de 1809, o território passou ao domínio de Portugal, com o nome de “Colônia de Caiena e Guiana”.
Essa ocupação permitiu o acesso do governo português a mudas e sementes de especiarias de grande valor econômico para a época, e que eram cultivadas pelos franceses. Da mesma forma, foi trazida de Caiena uma nova espécie de cana de açúcar, muito mais produtiva do que as usadas pelos portugueses, e que se tornou base de boa parte da economia colonial.
Em 1817, Portugal e França estabeleceram acordos diplomáticos que incluíram a devolução da Guiana. Durante dois séculos o território do Amapá fora causa de disputa entre Portugal e França. Vários acordos não haviam conseguido pôr fim ao litígio. Pelo Tratado de Utrecht, de 1713, o governo francês aceitara como limite da Guiana o rio Japoc (nos mapas brasileiros chamado de Iapoque ou Vicente Pinzón). No entanto, a França não concordara com os mapas brasileiros e portugueses, insistindo em afirmar que o rio Oiapoque estava mais abaixo e assim o Brasil perderia todo o território do Amapá.
Como resultado, a arbitragem tornou-se essencial para resolver uma disputa que remontava a quase duzentos anos. O Brasil já havia se oferecido, em 1856, para dividir o território disputado tomando como limite o rio Calçoene, mas a França recusou esta partilha, reivindicando os seus direitos sobre o Araguari. O território em questão, portanto, incluía todo o norte do estado do Pará, nordeste do estado do Amazonas e parte do leste de Roraima. Representava uma área de 550.000 km², maior que a França continental.
Em 1895, tensões fronteiriças eclodiram num evento conhecido no Brasil como Intrusão Francesa no Amapá, ou Massacre da Vila do Espírito Santo do Amapá, uma escaramuça que envolveu 340 tropas e causou mais de 100 mortes de militares e civis. Sob grande pressão da sociedade em ambos países, uma arbitragem, com o Barão do Rio Branco defendendo o Brasil, por parte do presidente da Suíça, Walter Hauser, deu parecer favorável ao Brasil em 1900.
Nas duas disputas com a França no século XIX, o Brasil saiu vencedor.
Brigada Real de Marinha, atual Corpo de Fuzileiros Navais, desembarcando em Caiena, capital da Guiana Francesa – Desembarque em Caiena, Óleo sobre tela, Álvaro Martins, 1809.
A disputa por territórios e a temida ameaça francesa
Ainda hoje, a Guiana Francesa tem disputa territorial com o Suriname e este tem disputa também com a Guiana Inglesa, que por sua vez tem também outra disputa territorial com a Venezuela. O Brasil não tem nenhum problema fronteiriço com qualquer país limítrofe.
Em 2019, o então vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que a questão do Amapá ainda é perigosa em relação à França. Sob o título de “Os militares e suas concepções sobre a Amazônia”, a revista Veja publicou um seminário sobre a região, de militares para militares. O vice-presidente Mourão levantou uma preocupação que assusta: a possibilidade de o Brasil perder o Amapá para a França via Guiana Francesa.
“Quero chamar a atenção sobre a situação do Amapá. O Amapá é uma ilha. Não está efetivamente integrado ao território nacional. Se olharmos o Amapá e a Guiana Francesa, eles constituem um conjunto. E vamos lembrar que a Guiana Francesa é a presença da União Europeia na América do Sul. Com todas as consequências que isso pode ter. Nós, brasileiros, não podemos permitir que o Amapá seja atraído para a França. Tem que estar aqui, na nossa mão” afirmou Mourão segundo a revista Veja de 07/11/2019. O vice também falou da necessidade de integrar o Amapá por rodovias. E lembrou ainda que blocos de exploração do pré-sal na região foram arrematados por uma empresa francesa.
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A plateia era exclusivamente de militares. Para Mourão, o Amapá não está integrado plenamente a nós. É o discurso de um general brasileiro.
O Amapá tem uma configuração peculiar pelo fato de ser um espaço amazônico, fazer fronteira com a União Europeia (UE) através da Guiana Francesa e possuir um forte apelo geopolítico, militar e econômico no Norte da América do Sul, sob o discurso da defesa nacional. A França tem ali também sua base espacial de lançamento de foguetes, o centro espacial Kourou, e sua utilização pela Agência Espacial Europeia para o lançamento de foguetes Ariane propiciou o desenvolvimento de “Alta tecnologia em meio a selva“. O Brasil criou o Projeto Calha Norte e o SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia) com o objetivo principal de salvaguardar a soberania brasileira da Amazônia.
Uma organização foi criada com os países amazônicos para integrar a região e protegê-la de qualquer ameaça, invasões, exploração ilegal, tentativa de internacionalização, etc: o OTCA, a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. O órgão existe há mais de 40 anos, mas poucos sabem de sua existência. Todos os países amazônicos fazem parte, exceto a França. Todas as Guianas estão ali, menos a francesa. Os organizadores se limitaram a convidar a França algumas vezes para participar de debates. Ou seja, a França também é um país integrante da Amazônia, mas foi vetada como sócio da OTCA. Argumentaram que a Guiana Francesa não é um país, mas um território ultramarino de um país Europeu. O órgão passou por vários problemas políticos, financeiros e de coordenação. Tomou fôlego com a famosa Conferência Rio 92 ou ECO 92. Ainda funciona timidamente.
A UNASUL, um órgão com um propósito estratégico, fechou as portas também.
No fim das contas, o que se sabe é que a França sempre teve boas relações com o Brasil nos últimos 120 anos, porém dizem que os guianenses ultramarinos enxergam o Brasil com uma certa distância e desconfiança, enquanto o Brasil e países vizinhos parecem temer uma interferência europeia ainda.
Na fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa existem muitos problemas sociais e econômicos. Na área de segurança, existem vários acordos de integração devido aos frequentes casos de tráfico de drogas, garimpo ilegal, prostituição, crimes de todos os tipos possíveis, na maioria das vezes, envolvendo brasileiros em território francês. A população brasileira é bem maior que a francesa e já compõem 10% da população da Guiana Francesa. Muitas brasileiras nativas de tribos indígenas preferem ter seus filhos na Guiana Francesa para ter benefícios da França. Brasileiros que estão presos lá preferem cumprir a pena lá mesmo.
Existe muita cooperação de cursos e eventos na área de segurança entre os dois países. Militares franceses até participam de cursos de Guerra na Selva do CIGS do Exército, assim como militares brasileiros fazem cursos militares na Guiana também. Exercícios militares em conjunto são realizados invariavelmente.
As três Guianas têm acordos bilaterais com organismos de cooperação caribenhos, islâmicos e africanos. Sua cultura, línguas e composição étnica é bem diversa do restante da América do Sul. Seus idiomas são o francês, inglês e holandês. Nenhum deles usa o espanhol ou português. Seus grupos étnicos são compostos de nativos ameríndios, negros, chineses, indianos, muçulmanos e outras etnias orientais. São isolados por barreiras culturais e geográficas.
Foi criada uma ponte e um Corredor Transfronteiriço entre a Guiana Francesa e o Amapá para circulação rodoviária de bens, serviços e comércio. Em geral, os militares de países amazônicos compartilham o mesmo receio da interferência das ex-potências coloniais.