O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), nas pessoas de seu presidente e vice-presidente, desembargadores Ricardo T. do Valle Pereira e Fernando Quadros da Silva, receberam no último (28/3/22) o comandante militar do Sul (CMS), general Fernando José Sant’Anna Soares e Silva. A notícia que poderia se chamar de uma “amenidade institucional” foi singelamente publicada no site do Tribunal com direito a fotos sorridentes e previsíveis tapinhas nas costas.
O comandante veio acompanhado dos coronéis Cláudio Rangel, oficial de ligação (OLig) do CMS junto ao Poder Judiciário, e Everton Lauriano Pedro, assistente do CMS. OLig é uma pessoa que faz a ligação entre duas entidades para garantir e coordenar a integração, articulação e comunicação de suas atividades. Uma espécie de embaixador em escala menor.
No encontro, Valle Pereira reforçou a importância da relação entre as duas instituições, que classificou como “importante e tradicional”, tendo em vista as colaborações mútuas.
Difícil decodificar exatamente o sentido de “importante” e “tradicional”, e mais ainda penetrar o significado essencial do que poderiam ser “colaborações mútuas” entre um desembargador e um general do Exército brasileiro. Desvendar a semântica de pelica das autoridades constituídas nesse país é trabalho árduo que refoge a esse artigo…
Por outro lado, a infalível memória jornalística do mundo real com seus fatos concretos e provas sobejas é pragmática e bastante acessível ao comum dos mortais. Principalmente em socorro daqueles que olham torto para abraços e beijos excessivos entre instituições de um Brasil patrimonialista, cuja linha entre o público e o privado é tão fina quanto o véu de uma noiva já não tão virgem.
UM ANO DE “CAFÉ COM TIRO”
Pois a memória nos traz o seguinte. Há exatamente um ano, aos 31 de março de 2022, a Revista Sociedade Militar publicou uma matéria que ficou conhecida pelo apelido carinhoso de “café com tiro”.
Tratava-se da ação popular nº 5003098-66.2021.4.03.6105, que enquadrava como réus a fabricante de armas TAURUS, IMBEL e cinco oficiais generais do Exército Brasileiro. A Ação tramitava na 2ª Vara Federal de Campinas, trazendo acusações de afronta a princípios como legalidade e economicidade.
Segundo a Ação, não havia previsão legal para que as Forças Armadas promovessem eventos comemorativos ou de estreitamento de relações em que funcionários da justiça recebem adestramentos de tiro e participam de coquetéis, cafés da manhã e almoços comemorativos.
O advogado que propugnou a ação, como quem entende bem o significado de palavras como imoralidade, prevaricação, desvio de finalidade e corrupção entendeu que “qualquer funcionário público que não seja militar ou policial, que tenha a opção de usar uma arma para se defender, segundo a lei, tem que custear os próprios adestramentos, exames psicológicos e demais medidas para se adaptar ao uso do armamento.”
Mas o que é claro como água para alguns, para outros pode ser turvo como borra de café. O juiz que julgou a ação e o Ministério Público preferiram decidir com base no último expediente.
Segundo eles, os magistrados (aqueles que tomaram café com tiro) “têm direito ao porte de arma e é exigido deles comprovação de capacidade técnica para o porte de arma de fogo. Por esse motivo devem se submeter a treinamentos periódicos de tiro e exame de capacidade técnica, podendo se valer, para essa capacitação, de serviços prestados por órgãos da União, sem ônus”.
Isto é, se o que foi dito significa o que foi escrito – cuidado com a semântica! – pode-se entender que as Forças Armadas, Exército, Marinha e Aeronáutica são já há mais de um ano “prestadoras de serviços” ao Poder Judiciário. Alguma coisa escapou ao constituinte originário, pois (mais) essa destinação da classe militar não está no artigo 142 da Constituição. Talvez esteja nas letras miúdas do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias… e ninguém leu.
A TRADICIONAL MÃO AMIGA
Voltando ao presente, é impossível não se lembrar da matéria publicada há dois dias sobre a “mão amiga” que a Justiça estendeu ao Exército. Com essa decisão passa a prevalecer a visão das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, que elaboraram juntas o Projeto de Lei nº 1.645 de 2019.
A partir da sanção da Lei, na prática, o Exército brasileiro passa a ter oficiais do quadro auxiliar de mesmo posto e tempo de serviço recebendo salários diferentes. Importante salientar que esses oficiais – todos iguais segundo o Exército, mas diversos entre si, segundo o Judiciário – foram sargentos a maior parte de suas carreiras, gente do povo, portanto.
Conforme o desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região mencionou acima, serão essas as “colaborações mútuas” entre as duas instituições, Forças Armadas e Judiciário? Teremos conseguido um vislumbre do que significa “importante” e “tradicional” no Brasil? No dizer de Raymundo Faoro em seu livro “Os Donos do poder”, quando discorre extensamente sobre a fina fronteira entre público e privado, os brasileiros “iam-se habituando a exercer os cargos como coisas suas”.