Opinião: A tática velhaca e batida de “virar a página” sem punir culpados
Segundo reportagem da Folha de São Paulo, o comandante do Exército “reforçou a todos os oficiais e sargentos da Força a orientação de que os militares não podem ter perfis em redes sociais com identificação de função militar e patente.” A vedação não é nova, consta de portaria interna de 2021. O atual comandante tem se mostrado preocupado com a manifestação indevida de militares pelas redes, e que elas sejam interpretadas como opiniões oficiais do Exército.
No desenho animado Alice no País das Maravilhas há uma passagem interessante em que a protagonista caminha no escuro por um caminho que é desfeito à medida que ela avança para frente. A implicação óbvia disso, para além de ser engraçado, é que ela não tem como voltar. Não tem como fazer um mea culpa, não tem como consertar os erros do passado, não tem como melhorar a partir de possíveis experiências equivocadas. É muito salutar viver no eterno presente, sempre em frente. Mas, é irresponsável fazer isso, quando se tem débitos a saldar ao longo do caminho percorrido. Apagar o passado, quando ele é desabonador, é coisa de gente descompromissada com a verdade. E é pior ainda quando essa “gente” é uma respeitada instituição estatal.
Assim como Alice, a menina sonhadora, a alta cúpula das Forças Armadas parece viver num país fabuloso, em que tudo pode ser feito e desfeito sem maiores consequências, sem que importe qualquer tipo de satisfação ou coerência para com a sociedade que lhes custeia os (grandes) salários e muito menos para com o espírito do tempo em que vivem.
Ora, o exemplo (sempre) vem de cima. Esse adágio não foi criado pelas redes sociais. O art. 28 do Estatuto dos militares proíbe qualquer militar de usar sua designação hierárquica em atividades político-partidárias. (VEJA ARTIGO SOBRE ISSO) Desde 1980 existe essa proibição. Desde 2018, quando o comandante do EB, general Villas Bôas, (chamado de comunista por alguns e de fascista por outros) fez tábua rasa deste mesmo artigo 28 da Lei 6.880, dando a sua opinião (política) sobre o julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), à época preso, a regra geral de que “a palavra convence, mas o exemplo arrasta” provou estar correta.
Generais, coronéis, capitães, sargentos – alguns até que nem eram realmente militares – transgredindo o mesmo artigo 28, transformaram as redes sociais em prolongamentos incômodos dos quartéis. Muitos se elegeram usando a imagem das Forças Armadas como muleta. Nunca foi tão conveniente (e lucrativo) ser (ou ter sido) militar durante os últimos anos.
Eis que num ato de epifania castrense, a Administração militar decreta que, a partir de agora, os desbundes políticos vindos da caserna e manifestados em rede social serão punidos no rigor da lei, Lei que existe desde 1980, mas que, assim como no conveniente caminho sem volta da sonhadora Alice, não foi aplicada aos transgressores de língua solta até agora, porque o passado foi convenientemente apagado.
Deplora o comandante do EB sobre a liberdade de expressão manifestada pela imprensa em 2021, quando foram publicadas charges sobre o desfile dos blindados enfumaçados da Marinha naquele ano. “A gente fica puto quando vê um negócio desses, fica chateado, ninguém gosta”, disse na ocasião. O general tem todo direito de não gostar. Só não tem o direito de querer que acreditemos ingenuamente que a aplicação da legislação militar é igual para todos. Esse papo de “virar a página”, “começar do zero”, e apagar o passado (sem que se puna os transgressores que começam a desaparecer nas sombras) tem limite.
Texto de opinião, colaborador – JB Reis