Em abril de 2018, às vésperas do julgamento no STF que definiria se Lula permaneceria preso, o então comandante do Exército Brasileiro, general Eduardo Villas-Bôas, escreveu no Twitter: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
O tuíte lacônico, mas controverso – porque antiético, já que contrariava vedação legal de que militares comentem assuntos políticos – teve peso considerável na eleição do capitão Jair Bolsonaro.
Um dia após assumir a presidência da República, Bolsonaro, dirigindo-se ao general Villas-Bôas, disse: “O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui.”
Cinco anos depois, o Tenente-Coronel Mauro Cid, ex-“cordinha” do ex-presidente, foi o que restou do séquito de mais de 6 mil militares que, assaz obedientes, assumiram cargos generosos na Administração Federal entre 2019 e 2022. Não julgamos o indivíduo, ele pouco importa. Não fosse ele, seria outro.
O que esteve por horas sentado em silêncio na CPMI veiculada pela televisão pública, calado, evitando responder às mais simplórias perguntas “para não produzir prova contra si mesmo”, protegido por um habeas corpus dado (quem diria!) pelo STF não era apenas Mauro César Barbosa Cid.
O que estava ali, emudecido, aparentando desamparo e confusão não era meramente um indivíduo, mas o condensado fardado da explosiva mistura entre militarismo e política. Culpado ou inocente, isso é irrelevante, Mauro Cid pode ser percebido como efeito colateral de algo que poderíamos chamar de militarismo estocástico.
ESTATÍSTICA E TERROR
“Estocástico” é palavra originária do grego, significando “sagaz”. Em Estatística o termo “estocástico” se refere à contraparte probabilística de um processo determinístico. Ao invés de um único modo de evoluir, em um processo estocástico há uma indeterminação: mesmo que se conheça a condição inicial, existem várias, por vezes infinitas, direções nas quais o processo pode evoluir. “Ordem através do caos…”
Em política, o extremismo é um movimento antidemocrático, que se opõe a qualquer moderação e ressalta a vocação à destruição do oponente. São comuns instigações a eliminação do outro, o uso sistemático de ameaças ou violência contra um alvo nítido, a construção de um clima de desorganização política e a imprevisibilidade.
Intencionalmente procura-se implantar o pânico político, assim como criar uma energia que legitima grupos fanáticos ou terroristas.
O terrorismo estocástico resumidamente é fruto da retórica inflamada de um líder carismático contra um grupo determinado de pessoas ou instituições reconhecidas. Conquanto o discurso seja abjeto e hostil, não se pode detectar nele elementos probatórios para uma imediata criminalização e portanto para neutralização da violência que ele incuba.
Seu objetivo, que é estatisticamente provável, mas cujas especificidades não podem ser objetivamente detectadas, é a mudança da realidade por intermédio da violência.
Estudiosos do assunto afirmam que o que houve em 8 de janeiro foi resultado claro de terrorismo doméstico – estocástico – ideologicamente motivado. Terrorismo, neste contexto, referindo-se à “violência ideologicamente motivada”.
ONDE ESTÁ WALLY?
Where’s Wally? (Onde Está Wally? no Brasil e Portugal) é uma série de livros de caráter infanto-juvenil criada pelo ilustrador britânico Martin Handford. Nos livros, o leitor encontra diversas ilustrações que ocupam duas páginas inteiras, fartamente ilustradas, nas quais em algum lugar está escondido Wally, personagem central da série. Wally sempre se veste da mesma forma e com as mesmas cores.
Os atos de 8 de janeiro poderiam acontecer; tinham alguma probabilidade de ocorrer, mas as variáveis eram tão imprevisíveis e chegavam a ser tão subliminares que levaram as autoridades que monitoravam os eventos ao perigoso extremo de “pagar para ver”; e, de fato, foi isso que aconteceu.
Porém, folheando o extenso livro da aventura politizante da classe militar nos últimos 10 anos, é possível encontrar aqui e ali o nosso “Wally”, vestido sempre da mesma forma e com a mesma cor camuflada.
É possível, embora seja improvável – e é aqui que reside a inutilidade da CPMI dos atos golpistas – detectar que o 8 de janeiro, se não foi planejado, foi a “ultima ratio” de uma turma de militares de alto escalão, que sabia muito bem o que estava fazendo – mesmo que nada fizessem…
2011 → comissão da verdade no governo Dilma Rousseff: depoimentos de Ustra reacendem as simpatias por um governo militarizado;
2013 → o mensalão é comprovado pelas investigações e a corrupção política majoritariamente petista é evidenciada;
2014 → Jair Bolsonaro “lança” sua pré-campanha junto ao público militar na AMAN, cujo comandante à época era o atual comandante do Exército, general Tomás / Inicia-se a operação lava-jato / Publicado pela FGV uma pesquisa em que as Forças Armadas alcançam impressionantes 78% no grau de confiabilidade da sociedade;
2016 → no impeachment de Dilma, Bolsonaro fez várias menções ao regime militar, que torturou a então Presidente, louvou o torturador de Dilma (coronel Ustra) e usou a frase que se tornaria seu slogan de campanha em 2018: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” (misto do lema da Brigada Paraquedista com integralismo);
2018 → tuíte de Villas-Bôas e subsequente prisão de Lula;
2019 → Bolsonaro é eleito presidente da República, sendo o núcleo do poder praticamente uma sucursal do Alto Comando do Exército;
2022 → Após a derrota nas urnas, apoiadores de Bolsonaro acampam em frente a diversos quartéis pelo país, no que são apoiados e defendidos por alguns comandantes militares;
2023 → invasão e depredação da praça dos Três Poderes em Brasília.
* Os texto publicados não refletem necessariamente a visão de mundo da editoria da Revista Sociedade Militar.