A propaganda sempre foi a alma do negócio. Não só em atividades comerciais, mas também quando o objetivo é legitimar ações estatais, digamos, controversas e que têm potencial de suscitar dores de cabeça para os atores envolvidos.
Como estamos num tempo em que o intelectualismo abre mais portas do que outrora a força bruta sequer sonhava ser capaz, o Exército quer concretizar o seu projeto de transferir a nova Escola de Sargentos para o nordeste brasileiro.
De alguns anos para cá começaram a surgir ofertas de temas relacionados ao meio ambiente nas linhas de pesquisa dos cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu nos Cursos de Altos Estudos (CAEM) e de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPAEx).
Um dos trabalhos pinçado no Repositório da ESG (Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia – CAEPE) publicado por um oficial (hoje na reserva) dá algumas indicações de que o Exército está procurando ampliar suas competências no que diz respeito aos assuntos afetos ao meio ambiente.
Em um trecho da publicação intitulada “A gestão ambiental no exército brasileiro: o campo de instrução Marechal Newton Cavalcanti” (não é coincidência, este campo de instrução é o destino da nova ESA), o autor diz que o EB está afinadíssimo com o tema do ambientalismo:
“Por meio [da educação ambiental], cria-se a mentalidade do uso sustentável do ecossistema. Os oficiais e sargentos que realizam os estágios disponibilizados replicam para o restante da tropa o conhecimento adquirido. Pode-se considerar que há reflexos positivos para a sociedade em geral; pois, anualmente, ao término do período de serviço militar obrigatório, milhares de cidadãos que tiveram a oportunidade de receber alguma educação ambiental passam a ser vetores dos conteúdos aprendidos junto às comunidades.”
CONFORMIDADE AUTORREFERENCIADA
Em outra frente, mas com o mesmo alvo – atribuir-se credenciais que não são de seu metiê – em 2020, o EB instituiu o seu próprio ISO9000 ambiental. Trata-se do “Selo Verde-Oliva de Sustentabilidade” que é uma distinção concedida pelo Departamento de Engenharia e Construção (DEC) em forma de certificado às organizações militares que alcancem um índice de conformidade ambiental superior a 90% da lista de verificação estabelecida pelo Programa de Conformidade Ambiental do EB.
No site do EB há uma publicação sobre meio ambiente que parece ter sido replicada do repositório da Escola Superior de Guerra. Diz-se que “devido à sua capilaridade, o Exército Brasileiro possui organizações militares localizadas em todos os biomas nacionais: Amazônia, pantanal, cerrado, caatinga, mata atlântica e pampas. Atualmente, as áreas patrimoniais do Exército Brasileiro representam importantes fragmentos preservados da vegetação nativa desses ecossistemas. Assim, essas organizações contribuem para a preservação de espécies da fauna e da flora e para a regulação microclimática de grandes centros urbanos.”
AJUDINHA DA IMPRENSA
Mas, a guerra informacional em torno da nova ESA extrapola o ambiente acadêmico. A Folha de Pernambuco publicou um artigo chamado “Campos de instrução militar e o meio ambiente”. Nele o autor defende o projeto do Exército, alegando que a polêmica “visa a desgastar a imagem da Força terrestre, que busca afastar-se das contendas políticas nas quais se envolveu em anos pretéritos.”
“Embora os exercícios desencadeados nos campos de instrução do Exército sejam possíveis riscos ao sistema ambiental, verificou-se que, exatamente nessas áreas, ocorre um processo de recuperação e de conservação dos ecossistemas.
“Protegidos que são pelas normas estabelecidas pela Força Terrestre, há campos de instrução na selva, no cerrado, no pantanal, na caatinga, no pampa e em nenhum deles ofende-se o meio ambiente em nome da preparação para o combate. Certamente é o caso da futura ESA.
“No projeto, já aprovado, prevê-se manejo florestal, reaproveitamento das águas, adaptação ao mercado de carbono, edificações modernas compatíveis com as melhores práticas da preservação diária das instalações.”
FUTURO ECOCÍDIO
Conforme noticiado também pela Folha de Pernambuco, por trás da pressão contra as obras está o Fórum Socioambiental de Aldeia, entidade que questiona o empreendimento desde 2022. Em março daquele ano, ela conseguiu o apoio do único deputado da Rede no Congresso, Túlio Gadelha, para questionar o Ministério Público Federal sobre o projeto do Exército.
“Os responsáveis pelo empreendimento possuem ciência que a área prevista para construção e instalação da ESA se trata de área de proteção ambiental (APA), amparada pelas leis de proteção aos mananciais, pela Lei da Mata Atlântica e por diversas outras legislações de proteção ambiental, que impõe restrições e limites à empreendimentos que coloquem em risco o ecossistema destas áreas?”, indagou Gadelha.
https://www.youtube.com/watch?v=WGetzQBIa1c
E acrescentou: “Como compatibilizar estas restrições com a construção do empreendimento de tamanha magnitude?” Gadelha ressalta que o empreendimento deve “desmatar 150 hectares de mata atlântica”. Estudo de cenário ambiental assinado por sete pesquisadores das Universidades Federais de Pernambuco, Rural de Pernambuco e de Alagoas, divulgado em 21 de maio, avalia que 336 mil árvores serão removidas, causando a perda de 44 toneladas de estoque de carbono.
De acordo com dados do Banco de Projetos para Emendas Parlamentares da Força terrestre, disponibilizado na Câmara dos Deputados, o valor estimado para implantação e construção da Escola de Sargentos é de mais de 3 bilhões de reais.
O excerto abaixo, recentemente publicado pela Revista Sociedade Militar, é de autoria do professor aposentado Heitor Scalambrini Costa:
“O disparate e a insanidade são de tal magnitude que, caso o desmatamento seja realizado, colocará em risco os recursos hídricos do sistema Botafogo, principal fonte de fornecimento de água que atende os municípios localizados na Zona Norte da Região Metropolitana do Recife (Olinda, Igarassu, Paulista e Abreu e Lima), com uma população estimada em mais de 700.000 pessoas.”
“Os argumentos injustificáveis para tal empreendimento negam a ciência, além de autoritários e sem nenhuma fundamentação técnico-científica que justifique este monstruoso desmatamento de uma floresta estabelecida. Aceitar a promessa de replantio da floresta desmatada, em outro local, carece de no mínimo algum sinal de inteligência.”
Por derradeiro, mas não menos importante, o leitor mais sagaz deve ter desconfiado qual é o nome do articulista da Folha de Pernambuco, que fez apologia tão apaixonada do projeto da nova Escola de Sargentos. Acertou quem pensou em Otávio Santana do Rêgo Barros, general do Exército brasileiro. Nada é por acaso.
JB Reis
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