Para muitos pode ser até inédita a informação de que na Segunda Grande Guerra mundial morreram mais marinheiros na costa brasileira do que os nossos heróicos soldados da FEB na Itália.
É exatamente nesse contexto que entra a estreia do épico Monitor Parnaíba, encouraçado carinhosamente apelidado de “Jaú do Pantanal” e “Caverna Mestra da Armada”, apelido de quem ou o que é mais antigo numa função na Marinha de Guerra. Armada é como é designada a Marinha de Guerra do Brasil, diferente da Marinha Mercante.
A embarcação tem 86 anos e é um navio da classe monitor que tem como função apoiar as patrulhas e operações navais. Um navio patrulha. Segundo apurado pela Revista Sociedade Militar, os EUA tem alguns navios mais antigos que o nosso “Jaú do Pantanal”, mas nenhum em atividade ainda. O navio mais antigo dos EUA ainda em atividade, o USS Blue Ridge, foi comissionado em 1970. Todos viraram navios-museus e servem como patrimônio, tal como o USS Constitution.
Os russos têm um navio bem mais antigo em atividade, o navio russo Kommuna, tendo sido lançado pela primeira vez durante o reinado do czar Nicolau II no ano de 1913 com o nome de Volkhov. Porém, é um navio de salvamento e não armado.
Apesar de integrar a Marinha russa, o Kommuna é um navio civil, especializado na preparação de mergulhadores e buscas subaquáticas, diferente do encouraçado Parnaíba que permanece até hoje como navio patrulha de guerra. Armado até aos dentes.
O Navio Monitor Parnaíba – U 17, ostenta esse nome em homenagem a esse rio do Piauí. Foi construído pelo Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras, hoje AMRJ. Produção tupiniquim, diferente de muitos que temos na Marinha. Teve sua quilha batida em 11 de junho de 1936, pelo então Presidente da República Getúlio Vargas, foi lançado ao mar e batizado em 6 de novembro de 1937, tendo como madrinha a Primeira-Dama, a Sra. Darcy Sarmanho Vargas.
É projetado para operações ribeirinhas e atua ainda hoje nas águas fluviais de Ladário, Mato Grosso do Sul, desde sua incorporação à Flotilha do Mato Grosso em 4 de março de 1938. Neste ano já tinha sofrido um incêndio em sua praça de caldeiras.
Incrivelmente, operou em centenas de missões com motor a vapor até sua modificação para motor a diesel em 1999.
Rio Paraguai, 7 de abril de 1943: bem longe do Atlântico Sul, onde torpedeamentos de mercantes brasileiros por submarinos alemães levaram o Brasil a declarar guerra à Alemanha em agosto de 1942, o monitor Parnaíba participava de exercícios com a Flotilha de Mato Grosso, no Rio Paraguai.
Naquele 7 de abril, os treinamentos de rotina foram interrompidos por uma ordem para que o Monitores Parnaíba e o Paraguassu seguissem o mais rápido possível para o Rio de Janeiro. O objetivo: serem preparados para missões de patrulhamento do porto de Salvador e da Baía de Todos os Santos, por solicitação do almirante Lemos Basto, do Comando Naval do Leste.
Desta vez, a viagem não foi fácil. Já escoltados no mar pelo navio-mineiro Carioca (convertido em corveta anti-submarino), entre Rio Grande e Florianópolis, os monitores enfrentaram um mar de vagas. O fundo chato do Parnaíba, projetado para operar em rios e não para navegar naquelas condições severas de mar, recebeu fortes pancadas, acarretando algumas avarias.
A coberta da tripulação, sob o convés de proa, precisou ser fechada. Pelo lado positivo, o escoamento de água embarcada foi satisfatório, e não houve mais incidentes até 24 de junho, quando os navios chegaram ao Rio de Janeiro após navegarem 2.800 milhas náuticas. Nos três meses seguintes, o Arsenal faria reparos nos monitores e os prepararia para a guerra anti-submarino.
As principais modificações feitas no Parnaíba foram a substituição do pesado canhão de 152mm por um de 120mm semelhante ao do Paraguassu, mais adequado a engajar um submarino inimigo na superfície e com munição mais abundante.
Os dois canhões de 47mm junto ao passadiço foram mantidos, mas os morteiros de 87mm sobre a casaria de popa deram lugar a duas metralhadoras antiaéreas de 20mm. Outras quatro foram instaladas numa plataforma construída no tijupá (área sobre o passadiço do navio). Por fim, o Parnaíba foi equipado, conforme documentado à época, com calhas para bombas de profundidade à popa, modificações pelas quais também passou o Paraguassu.
Num período fundamental de virada na luta contra os submarinos alemães e italianos no Atlântico e nas costas brasileiras, cada navio era importante. Quase nada se fala de submarinos italianos na costa brasileira. Navios brasileiros, como o Cabedelo, teriam sido afundados no Caribe por submarinos italianos como o Da Vinci, Torelli ou o Capellini.
A Marinha do Brasil vinha também sendo reforçada, em sua capacidade anti-submarino, com a entrega por Lend-Lease de caça-submarinos construídos nos Estados Unidos. O caça-submarino (“caça-ferro”) Guaíba era um deles.
Os monitores Parnaíba e o Paraguassu, após o final de suas modificações para a luta anti-submarino, realizaram provas com o novo armamento entre setembro e outubro de 1943, incluindo o lançamento de bombas ativas. Em cumprimento ao Aviso nº 548 (confidencial), os dois monitores suspenderam em 4 de novembro para Salvador, escoltados pelo navio-mineiro/corveta Cananéia, atracando em Salvador no dia 10 do mesmo mês, após escala em Vitória. Novamente, enfrentaram mar de grandes vagas, mas o Parnaíba se comportou bem.
Começaram em seguida as missões dentro e fora da Baía de Todos os Santos. Dentro desta, fazia-se a proteção de navios com participação também das lanchas do Parnaíba nas patrulhas anti-submarino, podendo tanto sinalizar a ameaça a outros navios quanto atacar com suas próprias bombas de profundidade (2 a 4 por lancha), buscando também impedir atos de sabotagem. Fora da baía, o Parnaíba escoltava navios saídos do porto até pontos determinados, onde se reuniam a comboios já em trajeto.
A primeira missão do tipo foi feita em 22 de novembro, escoltando cinco navios norte-americanos e onavio auxiliar Vital de Oliveira até que estes se incorporassem a um comboio Rio-Recife-Trinidad Tobago. A missão seguinte, no dia 29, foi a proteção à saída do novo encouraçado norte-americano Iowa (BB 61), um dos maiores e mais poderosos do mundo. Era como se o “Jaú do Pantanal”, o grande bagre predador dos rios, agora pequeno na imensidão do mar, escoltasse um tubarão branco!
O USS Iowa é o primeiro entre os maiores e mais poderosos navios de batalha (battleship class) já construídos. Esse colosso é o único na história dos EUA que possuía a capacidade de ter armas que poderiam lançar projéteis nucleares. Participou de batalhas heróicas no Pacífico, sobreviveu até a furacões e incêndios. Tem uma longa jornada de combate e foi descomissionado em 1990.
Oceano Atlântico, 2 de dezembro de 1943: naquele dia, mais cinco navios norte-americanos foram escoltados pelo Parnaíba até se incorporarem a mais um comboio Rio-Recife-Trinidad Tobago. Foi nessa missão que o monitor passou pelo seu grande desafio, uma verdadeira prova de fogo. Uma avaria numa das duas máquinas de ventilação, combinada a um provável mau fechamento da porta da praça de caldeiras, causou um desequilíbrio na pressão, gerando um retrocesso de chamas em ambas as caldeiras devido a não haver um suficiente excesso de ar. Essa soma de fatores ocasionou às 13h45 um incêndio de grandes proporções.
A praça foi abandonada e, com ameaça de explosão, as embarcações do navio foram arriadas e sinais de socorro foram emitidos. Por 45 minutos a tripulação combateu as chamas, de forma exemplar, até que se conseguiu interromper a alimentação de combustível usando vapor para parar a bomba de compressão do óleo, o que extinguiu o incêndio.
As atuações do imediato, capitão-tenente Norton Demaria Boiteux e do suboficial Maximiano José dos Santos, foram bastante elogiadas. Este, que já se destacava há anos por sua carreira na Flotilha de Mato Grosso, foi o primeiro a adentrar a praça em chamas, e merece uma atenção especial à sua biografia.
Maximiano José dos Santos, nascido em 1893, entrou para a Marinha como marinheiro de 3ª classe em 1913, servindo no encouraçado São Paulo durante a Primeira Guerra Mundial (!), tendo seguido para os Estados Unidos no navio quando este passou por modernização na direção de tiro. Sua primeira passagem por Ladário foi na década de 1920, servindo no aviso Oiapoque e no monitor Pernambuco – nome de seu estado natal. Aperfeiçoou-se no Rio de Janeiro, voltando à Flotilha no final da década de 1930 como suboficial condutor de máquinas, já no monitor Parnaíba.
Por suas ações na Segunda Guerra Mundial, somou mais uma medalha à que recebeu por servir na Primeira. Passou à reserva em 1946 como tenente e permaneceu morando em Ladário, mantendo sempre contato com as diversas gerações de marinheiros que lhe sucederam no Parnaíba e na Flotilha, onde era considerado “Caverna Mestra”, mesmo não estando mais na ativa. Faleceu em 2006 com a avançada idade de 113 anos!!, levando a Marinha a homenagear sua memória batizando de Tenente Maximiano um navio de assistência hospitalar, incorporado em 2009 em Ladário.
De volta ao incêndio de 2 de dezembro, debeladas as chamas, a tripulação conseguiu colocar a propulsão do navio na linha às 17h30, e este voltou por seus próprios meios a Salvador, onde atracou no dia seguinte às 12h55 e passou por reparos. Em maio de 1944, o navio realizou provas para voltar à rotina de missões.
Além dos estragos causados pelo incêndio, o Parnaíba também sofreu avarias em janeiro e outubro de 1944, decorrentes de duas colisões com o Paraguassu em situações de forte ressaca e em atracação. Numa delas, o aríete deste chocou-se fortemente com o costado do Parnaíba, que resistiu. Já nos meses finais da guerra, o Parnaíba passou à subordinação do Estado-Maior da Armada e realizou mais escoltas de comboios ao sul, chegando ao Uruguai, até voltar ao Mato Grosso para ser reincorporado à Flotilha em 25 de maio de 1945.
Depois disso e até os dias de hoje, o glorioso encouraçado Parnaíba segue sua marcha impoluta nas águas doces do Pantanal como um velho bagre Jaú, ainda vigoroso em suas missões.
Em 6 de maio de 1999, após um ano e meio de obras realizadas na Base Fluvial de Ladário, a Flotilha do Mato Grosso recebeu o Parnaíba totalmente modernizado. Entre as modificações que o navio recebeu, estão a mudança no sistema de governo, do sistema de geração e distribuição de energia, substituição da propulsão a vapor por diesel, com a instalação de dois motores Cummins retirados das Fragatas classe Niterói, além da instalação de um convés de vôo.
Em dezembro foi realizado o primeiro pouso a bordo, feito executado por uma aeronave UH-12 Esquilo do 4º Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral. Após as modificações, o navio teve sua autonomia aumentada de 3 para 16 dias.
Ou seja, depois de cerca de sessenta anos operando incansavelmente, o antigo encouraçado Parnaíba sofre uma modernização digna de um “jovem” guerreiro viking do Pantanal. Deixa a propulsão a vapor e ainda recebe um convés de voo para receber helicópteros! Ainda se dá ao luxo de ser um porta aeronaves.
Com essas adaptações e desde o fim de suas batalhas nas águas agitadas do Atlântico Sul contra submarinos alemães e italianos o “imparável” Paranaíba seguiu cumprindo dezenas, senão centenas de exercícios e missões de combate ao tráfico nos rios entre o Paraguai e Bolívia, em estados como Acre, Rondonia e Amazonas com as forças especiais da Marinha, fuzileiros navais, mergulhadores de combate (GRUMEC), Polícia Federal, representações, etc
Nesse exato momento, enquanto lemos sobre suas incansáveis façanhas, o velho Jaú encouraçado de guerra, está com certeza participando de alguma nova missão nas silenciosas águas do Pantanal em prol da segurança fronteiriça de nossa pátria. Isso ainda o faz exatamente como fez ao enfrentar os ferozes tubarões alemães e italianos na Segunda Grande Guerra, protegendo até os lendários battleships couraçados da poderosa Marinha norte-americana.
Quando cada navio era importante para se somar ao esforço de escoltar comboios no Atlântico Sul, o “Jaú do Pantanal” deixou a água doce e enfrentou os perigos acima e abaixo da superfície do mar, patrulhando o oceano por onde a guerra chegou ao nosso país.
Com a idade de 85 anos, nada parece detê-lo em sua marcha resiliente. Segue armado até aos dentes. Até quando esse Netuno dos rios nos guardará?