Recentemente o Comandante da Marinha divulgou sua opinião sobre João Cândido e a pretensão que se tem de incluir seu nome no Livro dos Herósi da Pátria. O oficial usou palavras como “abjetos marinheiros” para se referir aos militares revoltados. Essa semana circula na rede um texto de oficial da armada brasileira apoiando a posição de Olsen e – entre outras coisas – dizendo que “A Hierarquia militar é a ordenação da autoridade e a Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento” e que “A Marinha de ontem, de hoje e de sempre se pauta pelo cumprimento de suas atribuições”
Ora, sabe-se de muito tempo que ser oficial general não faz de ninguém um santo. A história nos ensina, inclusive a recente, que há alguns que se utilizam dessa mesma hierárquia e disciplina tão referenciadas para fazer subordinados de escada para seus projetos pessoais.
A história, antiga e recente… a muito recente inclusive, nos ensina que na Marinha de ontem e de hoje, que “se pauta pelo cumprimento de suas atribuições”, muitos com estrelas nos ombros cometem erros, grande exemplo são as condecorações distribuidas para autoridades civis de carater duvidoso – sabe-se lá por que motivos e conchavos misteriosos – aquisição de navios gigantes que pouco navegam e a terminar… sabe-se lá onde. Tudo isso nos leva a crer que a hostória das “revoltas” contada pelo prisma dos autoproclamados “lordes” pode não ser tão imaculada.
A culpa dos almirantes
Pessoalmente acho que a cúpula da armada teve muita culpa em relação à Revolta dos Marinheiros. Era uma tragédia anunciada, há muito que a chibata deveria ter sido abolida, como já ocorrera no Exército.
O tratamento desumano dos subordinados é um erro grave e inadmissível. Nas instituições militares, embora haja uma estrutura hierárquica, todos são seres humanos. Ao negar repetidamente essa humanidade àqueles que detêm armas e poder, como vemos lamentavelmente até hoje, cria-se uma massa crítica potencialmente explosiva. Isso pode levar ao colapso individual ou, em algum momento, explodir em uma gigantesca crise coletiva.
Alguns anos depois a Marinha incorreu na mesma inépcia ao desconsiderar novamente demandas de subordinados, que pediam a contextualização dos direitos, coisas simples. A autivez dos almirantes, foi assim um dos “ingredientes” do movimento dos Marinheiros de 1964, que acabou se tornando o “estopim” do regime militar.
É preciso nesse momento lembrar de um trecho da carta reivindicatória da marujada, que circulou em novembro de 1910: “Faça aos Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilitam, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não tem competência para vestir a orgulhosa farda”.
E agora, ressalto um trecho que poucos mencionam: “educar os marinheiros que não tem competência para vestir a orgulhosa farda”. Uma das exigências era que os marujos indisciplinados fossem educados, mas obviamente não com o uso de castigos físicos, uma grande evidência que a Marinha exigia profissionalismo, mas talvez não ensinasse direito a profissão.
Patrono dos injustiçados
Caxias – a quem pouca atenção se dava até certo tempo – foi construído pela própria força terrestre como patrono do Exército, a instituição precisava de um nome forte para unir a tropa em torno dos ideais do Exécito, o termo Exército de Caxias foi imposto. Mas, João Cândido como representante, como herói, foi construído pelas próprias categorias de base, pela população que sabia o que era ser destratado.
O marujo foi o escolhido como o patrono dos injustiçados na Marinha. João Cândido ocupa seu lugar, portanto, de forma orgânica, representando os marginalizados pela Marinha: o marinheiro mestiço, maltratado como animal por oficiais que ainda são exaltados como heróis. Se um comandante permitia punições físicas após duas décadas da abolição da escravidão, não estaria ele também cometendo crime? E se os líderes navais toleravam tais abusos, não seriam eles os principais culpados pela revolta? Em uma hierarquia militar, a maior responsabilidade pelos erros recai sobre os líderes, seja por ação direta ou por omissão.
Só quem é seguidamente tratado como subhumano sabe como chega-se no limite, o que pode levar qualquer homem a atitudes impensadas, que naquele momento passam a ser reações contra tudo que sofreu e que o levaram ao limite do suportavel e que no desenrolar da “batalha” podem gerar consequências para quem não tem nada a ver com o caso… o chamado dano colateral.
Que se aponte os culpados
Se a Marinha repudia Cândido como herói, que mude o discurso e apure quem são os primeiros culpados… acima mencionados e outros indiretos – como o almirante que retornou os castigos físicos em 1890. Que, nesse tempo em que se pede tanto as “individualizações de condutas”, seria importante considerar a possibilidade de que, sendo justo, diga-se que o almirante fulano e cicrano foram o “estopim”, culpados por não ouvir os seguidos pedidos de mudanças no tratamento indigno.
Os corajosos marujso que iniciaram a revolta, pode-se dizer, fizeram o que precisava ser feito. Entretanto, um movimento nessa linha revoltosa, permeado pelo medo, desespero e rancor… quase sempre assume vida própria e passa a se movimentar em frentes independentes sem uma liderança definida.
Olsen vai embora daqui a alguns dias, como outros já foram.. vai ser esquecido, virar nome de um prédio, de um navio. Mas, João Cândido, o herói apócrifo, sempre vai estar lá dentro daquele prédio, na praça de máquinas do navio, no coração de um marinheiro todas as vezes que for tratado como um animal… E que ninguém se engane, isso ainda acontece.
Na medida em que a Marinha novamente se recusa a assumir seu erro como principal responsável – a causadora da revolta, por sistematicamente se negar a tratar homens como homens – permanece sendo injusta e a batalha de João Cândido e seus companheiros contra as injustiças continua acontecendo, é eternizada.
O herói em Cândido representado, sendo este o chefe ou não da tal revolta, o que pouco importa, continuará no imaginário como merecedor de todas as honras.
Pode até ser que dos dois lados desse imbróglio haja vítimas e algozes. Mas, cabe perguntar, quem primeiro foi vítima e quem primeiro foi algoz?
Att, Robson Augusto – Militar R1, Cientista Social, jornalista, especialista em inteligência e marketing ///