Imagine um momento de pura tensão nas águas do Atlântico, onde a soberania de um país e o orgulho de sua nação são desafiados por uma das maiores potências militares do mundo. No início dos anos 60, o Brasil se viu no centro de uma crise internacional, em uma disputa surreal que envolveu lagostas, navios de guerra e a ameaça iminente de um conflito armado com a França. Este é o relato de um dos episódios mais surpreendentes e desconhecidos da nossa história, onde coragem e estratégia militar da Marinha do Brasil e da Força Aérea, impediram que o mar brasileiro se tornasse um campo de batalha internacional.
Hoje, você vai saber tudo sobre as incríveis operações do dia em que a Marinha do Brasil e a Força Aérea Brasileira desafiaram e impediram uma invasão da Marinha Francesa ao mar do Brasil, onde porta-aviões, cruzadores, contratorpedeiros, fragatas, corvetas, submarinos e aviões de caça e bombardeiros de ambos os países estiveram preparados para a guerra.
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França se interessou pelas águas do nordeste brasileiro
Após esgotar a captura da lagosta em seu próprio litoral e no dos países da costa ocidental africana durante a década de 50, a França se interessou pelas águas do nordeste brasileiro, onde a pesca da lagosta crescia a olhos vistos. A exportação anual de lagostas nordestinas pulou de 40 toneladas em 1955 para 1.741 toneladas em 1961. O Brasil lucrava quase 3 milhões de dólares por ano com esse comércio, sustentando milhares de famílias de pescadores e comerciantes nordestinos.
No início da década de 60, uma delegação francesa foi enviada a Recife com a desculpa de negociar a vinda de embarcações com o intuito de realizar pesquisas sobre viveiros de lagosta no nordeste brasileiro. A autorização foi dada em março de 1961 para três embarcações por 180 dias, desde que em cada uma delas houvesse um oficial da Marinha do Brasil para fiscalizar as pesquisas. Já em abril de 1961, a autorização foi cancelada porque os oficiais da marinha constataram que, além de ter sido enviada uma embarcação a mais do que o permitido, os franceses não estavam fazendo pesquisa alguma, mas sim realizando pesca da lagosta em alta escala.
Em novembro de 1961, os franceses informaram que enviariam novas embarcações de pesca para a região, afirmando que pescariam fora das águas territoriais do Brasil, apenas em águas internacionais, dentro da plataforma continental. No entanto, o Brasil foi contra, pois considerava que os recursos da plataforma continental também eram reservados aos pescadores brasileiros.
Quando a Corveta Ipiranga e o Contratorpedeiro Babitonga acenderam a faísca de uma crise internacional
Em janeiro de 1962, a corveta Ipiranga, da Marinha do Brasil, apreendeu o pesqueiro francês Cassiopéia, que estava pescando lagostas a apenas 10 milhas da costa brasileira. Esse apresamento iniciou uma verdadeira batalha diplomática ao longo de 1962 entre os governos do presidente brasileiro João Goulart e do francês Charles de Gaulle. Essa batalha diplomática não intimidou os pesqueiros franceses, muito menos reduziu a ação dos navios da Marinha do Brasil.
O contratorpedeiro Babitonga apreendeu os pesqueiros Clamar e Loigné em julho de 1962 ao longo do litoral do Rio Grande do Norte, e a corveta Ipiranga apreendeu os pesqueiros Fulgor e Françoise Christine em agosto do mesmo ano, no litoral cearense.
No início de 1963, uma missão diplomática francesa chegou ao Brasil alegando querer negociar a questão da pesca da lagosta. Porém, na verdade, não queriam negociar; vieram dar o recado de que o governo francês estava disposto a garantir a pesca dos barcos franceses na plataforma continental brasileira, e duas embarcações de pesca já se dirigiam ao litoral brasileiro.
Por meio do Ministério das Relações Exteriores, o Brasil respondeu que a permissão de pesca não seria dada e solicitou que o governo francês não permitisse a vinda dessas embarcações para não atrapalhar as negociações já em curso. A França não só confirmou a vinda das duas embarcações como também anunciou a partida de outras, independentemente da ameaça de serem apresadas.
Tensão nas Águas: A ação decisiva da Corveta Forte de Coimbra e a reação diplomática que acendeu o conflito entre Brasil e França
No dia 30 de janeiro de 1963, a corveta Forte de Coimbra detectou a presença de três desses novos pesqueiros enviados pela França e solicitou que os comandantes dos mesmos rumassem para Natal para o apresamento das embarcações. Após a resposta negativa, a corveta recebeu instruções de terra para usar a força, na medida do necessário, para garantir o apresamento. Os franceses não entendiam bem o português, mas o soar do alarme de postos de combate e a visão da tripulação da corveta guarnecendo as peças de artilharia fizeram os comandantes franceses dos pesqueiros mudarem de ideia.
No dia 5 de fevereiro de 1963, durante as negociações entre ambos os países, o presidente João Goulart autorizou que três embarcações francesas realizassem a pesca de lagosta fora das águas territoriais brasileiras, mas dentro da plataforma continental. Os pescadores nordestinos iniciaram protestos, gerando forte pressão sobre o governo, ameaçando agir diretamente contra os pesqueiros franceses e seus representantes em terra para defender seus interesses.
Os protestos dos pescadores tiveram um grande apelo popular, principalmente no Nordeste, e obrigaram o presidente João Goulart a voltar atrás em 8 de fevereiro, proibindo novamente a pesca de embarcações francesas. Isso levou o presidente francês Charles de Gaulle a tomar uma medida militar enérgica e desproporcional, além de proferir sua famosa frase: “O Brasil não é um país sério.”
França lembraram publicamente que seu país tinha tecnologia nuclear, ao contrário do Brasil
O presidente francês determinou que uma mega força-tarefa naval, comandada pelo porta-aviões Clemenceau, se deslocasse para a costa africana, no Senegal, a apenas três dias de viagem para o Brasil, e cujas aeronaves poderiam fazer o percurso em poucas horas, com o objetivo de pressionar o governo brasileiro. A força-tarefa francesa partiu em 11 de fevereiro e era composta por um porta-aviões, três cruzadores, cinco contratorpedeiros, fragatas e mais navios de apoio.
Diante da posição firme do governo brasileiro de manter a proibição à pesca francesa, o presidente francês ordenou o deslocamento do contratorpedeiro Tartu, que se separou da força-tarefa e partiu em direção ao litoral nordestino, com a missão de garantir a pesca dos navios franceses dentro da plataforma continental brasileira.
Na opinião pública, a guerra estava declarada. “Navios franceses atacam no Nordeste e jangadeiros pescam lagosta” estampou o jornal Correio da Manhã. “Frota naval da França à espreita do Brasil”, anunciou o Última Hora. Enquanto isso, nos jornais franceses, mais de uma vez as autoridades lembraram publicamente que seu país tinha tecnologia nuclear, ao contrário do Brasil.
Marinha do Brasil contava com uma esquadra mais poderosa que a força-tarefa naval enviada pelos franceses
Na mesma época, a Marinha do Brasil dispunha de uma esquadra mais poderosa que a força-tarefa naval enviada pelos franceses. A esquadra brasileira era formada pelo porta-aviões Minas Gerais, dois cruzadores, 13 contratorpedeiros, oito contratorpedeiros de escolta (equivalentes hoje a fragatas), nove corvetas, dois submarinos e navios de apoio.
Em 21 de fevereiro de 1963, diante da grave situação, o presidente João Goulart e o alto comando das Forças Armadas, em Brasília, decidiram que todos os militares de férias seriam imediatamente convocados. O Quarto Exército (atual Comando Militar do Nordeste) entraria imediatamente em prontidão operacional para o combate, podendo tomar posições de defesa de costa no nordeste brasileiro assim que acionados.
Vigilância aérea avançada: FAB expande patrulhas a 900 km com modernos S-2F1 Tracker e caças F-80 e tecnologia de ponta para monitorar a ameaça francesa
A Força Aérea Brasileira começou a realizar imediatamente patrulhas que alcançavam até 900 quilômetros a leste da ilha de Fernando de Noronha para localizar o contratorpedeiro francês, utilizando as aeronaves de patrulha e reconhecimento P-15B, da Base Aérea de Salvador, e os B-17, da Base Aérea de Recife. Também deslocou imediatamente da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, para fortalecer as bases aéreas nordestinas, seus modernos aviões de patrulha marítima armada, S-2F1 Tracker, que na época eram as aeronaves mais modernas do mundo em sua categoria.
Os aviões contavam com uma suíte eletrônica bastante complexa para a época, incluindo radar de busca, radar Doppler, radar altímetro de baixa altitude, sensor para detectar anomalias magnéticas e sistema de contramedidas eletrônicas. Os esquadrões de aviação de caça da FAB também ficaram prontos com seus mais de cem caças F-80
Preparação Naval: Marinha do Brasil organiza força-tarefa para impedir a ação francesa nas águas da chamada Amazônia Azul
A Marinha do Brasil começou a preparar uma força-tarefa naval que partiria da Base Naval do Rio de Janeiro para as águas nordestinas, com o objetivo de recepcionar o contratorpedeiro francês e impedi-lo de entrar nas águas internacionais da plataforma continental brasileira, a chamada Amazônia Azul.
Essa força-tarefa era formada pelos contratorpedeiros Paraná, Pernambuco, Pará e Greenhalgh, e todos os demais navios da Marinha do Brasil, assim como os fuzileiros navais, deveriam entrar em estado de prontidão operacional.
A Vigilância Brasileira sobre o Contratorpedeiro Tartu
No dia 26 de fevereiro, patrulhando a distância da costa, o P-15 detectou no radar um grande navio rumando em direção a Fernando de Noronha. No dia seguinte, um B-17 fez o reconhecimento fotográfico: era o contratorpedeiro Tartu, da Marinha Francesa. O contratorpedeiro francês passou a receber vigilância constante da Força Aérea Brasileira, que ousadamente resolveu fazer uma aproximação ao navio francês, uma clara operação de dissuasão e um alerta de que, se entrassem na área da plataforma continental brasileira, seriam bombardeados imediatamente.
Essa operação ocorreu durante a noite, possivelmente do dia 27 de fevereiro, quando os S-16 da FAB voaram em formação aberta e a baixa altitude, com todas as luzes apagadas e silêncio total no rádio, para a aproximação do alvo. Utilizaram seus equipamentos passivos de guerra eletrônica que detectavam as emissões do radar de busca aérea do Tartu.
Próximos ao navio, os aviões cerraram formação e baixaram para apenas cerca de 30 metros de altitude, até que, praticamente sobre o contratorpedeiro, acionaram tudo que pudesse iluminar. Foi uma surpresa total! Os marinheiros franceses puderam ser vistos correndo desesperados pelo convés para assumirem seus postos de combate.
A tensão cresce: Os poderosos contratorpedeiros Paraná e Pará da Marinha do Brasil partiram para interceptar o contratorpedeiro francês Tartu
Durante os dias seguintes, o contratorpedeiro francês realizava regularmente exercícios de tiro antiaéreo para tentar intimidar a aproximação das aeronaves brasileiras, que respondiam com agressivos voos rasantes ao lado do navio francês, voando a baixa altitude com seus narizes apontados para o navio e seus poderosos foguetes sob as asas.
Ainda no dia 27 de fevereiro, a estação naval de rádio de alta frequência do Pina, em Recife, conseguiu interceptar uma mensagem do contratorpedeiro Tartu para todos os pesqueiros franceses na área, marcando um ponto de encontro na manhã do dia 28, para partirem juntos e entrarem na plataforma continental brasileira. O ponto de encontro ficava a aproximadamente 160 km de distância de Recife.
A madrugada do dia 28 de fevereiro foi a mais tensa de todas. Os poderosos contratorpedeiros Paraná e Pará partiram para interceptar o contratorpedeiro francês Tartu no ponto de encontro que ele havia marcado com os pesqueiros franceses. Se eles avançassem em direção à plataforma continental brasileira, teria início um conflito armado entre Brasil e França. As atenções estavam voltadas para o possível encontro do contratorpedeiro Paraná com o Tartu, que eram em muitos aspectos equivalentes, inclusive nos poderosos armamentos.
Manchetes de guerra: FAB, armada com bombas e foguetes, dava cobertura aérea
A bordo do Paraná, a tensão era grande. O navio navegava às escuras, os operadores de radar mantinham atenção total às telas repetidoras, e os vigias noturnos redobravam a atenção e sua vigilância. Com forte neblina, passava das 10 horas da manhã quando o contratorpedeiro Paraná estabeleceu contato radar com um alvo na superfície: era o Tartu.
O Paraná aproximou-se do alvo e o contratorpedeiro Pará vinha logo atrás, em seu apoio. Eles tiveram contato visual com o navio de guerra inimigo e com ele mais seis grandes navios pesqueiros. A FAB, armada com bombas e foguetes, dava cobertura aérea. Os contratorpedeiros brasileiros imediatamente se posicionaram entre a plataforma continental brasileira e os navios franceses, impedindo sua passagem.
A resposta militar de Goulart a Charles de Gaulle: cruzadores, contratorpedeiros e poderosos porta-aviões
Jornais da época noticiavam com muita apreensão esses acontecimentos. Como você pode ver em algumas dessas manchetes, o Brasil estava prestes a entrar em uma guerra aérea naval com a França. A partir do dia 1º de março de 1963, para reforçar os quatro contratorpedeiros brasileiros na região, começaram a chegar também à área de operações os cruzadores Barroso e Tamandaré, que, depois do porta-aviões Minas Gerais, eram os maiores e mais poderosos navios brasileiros. Também chegaram à área os contratorpedeiros Araguari, Marcílio Dias, Acre e o submarino Riachuelo, da época, entre outros navios de apoio.
Essa grande movimentação naval brasileira não era para ver o contratorpedeiro francês, que pouco poderia fazer frente àquela esquadra brasileira. Era um recado de João Goulart a Charles de Gaulle: sairiam muito caras as lagostas do litoral nordestino caso ele enviasse sua força-tarefa naval que estava parada na costa africana próxima de Senegal.
Recuo da Marinha Francesa: A substituição do Tartu e o declínio da opção militar
A partir daí, a Marinha Francesa tomou uma medida recuada, indicando que, diante de tantos navios brasileiros na área, o governo francês havia declinado da opção militar. A Marinha Francesa substituiu o contratorpedeiro Tartu pelo pequeno navio aviso de patrulha La Gracieuse. Toda a operação foi acompanhada de perto por contratorpedeiros brasileiros.
Um P-15 da FAB acompanhou o contratorpedeiro francês por um bom tempo, para confirmar que ele estava realmente voltando para se juntar à força-tarefa naval francesa na costa de Senegal. Após isso, pescadores franceses do porto de Camaret iniciaram uma grande revolta contra a atitude de seu governo.
Retirada e revolta: O fim da tensão confirmado pela FAB e as repercussões na França
Na manhã do dia 10 de março de 1963, o patrulha Fulgor e as embarcações pesqueiras restantes afastaram-se da região. A informação foi confirmada por um avião da FAB. Ao ficar fora da plataforma continental, os navios de pesca franceses ficaram sem pescar por mais de um mês, acarretando grande prejuízo aos pescadores e culminando com a sua retirada. Era o fim de um período de muita tensão.