A terceira-sargento Alice Costa, mulher transexual, foi reformada pela Marinha no último dia 6 de novembro. A informação foi revelada pela coluna Lauro Jardim, do jornal O Globo, neste sábado, 16 de novembro.
Há 3 anos, em agosto de 2021, Alice conquistou na Justiça Federal de Mato Grosso do Sul aval para adotar uniformes e corte de cabelo femininos e também uso do nome social.
Entretanto, segundo a advogada de defesa de Alice, Bianca Figueira Santos, na prática nada disso aconteceu. Desde a vitória judicial, a terceira-sargento teria sido submetida a frequentes inspeções de saúde que a mantiveram fora das funções. O tempo de afastamento, superior a 3 anos, foi justamente o argumento da Marinha para “aposentar” a militar.
Antes da transição, Alice já havia sido diagnosticada pela Marinha com transtornos de depressão e ansiedade, mas se manteve classificada como apta a trabalhar com restrições. Na prática, ela não poderia atuar em serviços armados ou noturnos, mas isso não era um problema, uma vez que supervisionava aquisição de medicamentos do Hospital Naval de Ladário.
Já com a transexualidade reconhecida judicialmente, supostos novos problemas de saúde passaram a ser diagnosticados, de acordo com a advogada de Alice, como transtorno de personalidade com instabilidade emocional, transtorno não especificado de identidade sexual, transexualismo, asma não especificada e cicatrizes e fibrose cutânea.
Bianca Figueira Santos diz que tentou ingressar com ação na Procuradoria-Geral de Justiça Militar para apurar transfobia com a terceira-sargento, mas não houve concordância da Corte.
Agora, ela move ação contra a Marinha visando a anular a reforma de Alice e também de outras 2 militares trans do Rio de Janeiro. Segundo a advogada, o modus operandi foi o mesmo: afastamento do trabalho por razões médicas antes inexistentes e por longos períodos.
“O intuito da Marinha sempre foi reformar, enquadrar em doenças inexistentes, levantar dúvidas sobre a condição trans (…), fomentar medo, fobia e preconceito, o que importava era retirar de cena (…)”, diz a petição.
Além da reincorporação, a defesa pede que Alice seja submetida a nova perícia supervisionada pela Justiça Federal e também uma indenização de R$ 150 mil por danos morais. Bianca também pede que, desta vez, o MPF (Ministério Público Federal) acompanhe o caso. Em maio de 2023, o órgão ministerial disse que estava por dentro da situação.
Confira o histórico da luta de Alice por reconhecimento da identidade de gênero
- Junho de 2021
Em 2021, Alice foi afastada dos serviços pela Marinha por 90 dias para tratamento de saúde e conseguiu na Justiça em meados de 2021 uma decisão para trabalhar usando uniforme e cabelos femininos na unidade de Ladário em Mato Grosso do Sul.
- Março de 2023
A União recorreu da decisão da Justiça, mas foi novamente derrotada em março de 2023. A 1ª Turma do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) garantiu à militar o direito de usar uniforme e corte de cabelo femininos e a usar plaqueta de identificação com nome social. A decisão também determinou o pagamento de R$ 80 mil por danos morais.
Na época, o desembargador Nelton dos Santos, relator do processo, lembrou que o STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu que a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e cabe ao Estado o papel de reconhecê-la.
“A União entende que a autora não pode ocupar as vagas reservadas aos militares do gênero masculino por ser uma mulher transgênero, mas, no momento em que prestou o concurso, dificilmente seria aceita no quadro de militares do gênero feminino porque ainda possuía ‘aparência masculina’, e tampouco estaria apta às referidas vagas na data atual em vista da ausência de mudança do nome do registro civil”.
- Dezembro de 2023
Em 15 de dezembro de 2023, Alice foi informada que seria afastada definitivamente do serviço militar por suposta incapacidade causada por transtornos mentais. A defesa da terceira-sargento contra-argumentou a justificativa da Marinha e afirmou que tem diversos laudos médicos afirmando que Alice é capaz de assumir normalmente suas funções na Marinha, sendo um deles emitido pela Fundação Oswaldo Cruz.
Na época, a Marinha admitiu à imprensa que considerava a militar “temporariamente incapaz”, mas negou a reforma e argumentou que não se manifestaria sobre as questões de saúde de Alice em defesa do respeito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade da terceira-sargento.
“Quanto ao assunto, é suficiente esclarecer que o art. 106, II, da Lei n° 6.880/80, o Estatuto dos Militares, impõe a reforma de militar de carreira que seja julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas, incapacidade esta que pode ser decorrente de qualquer uma das situações previstas no art. 108 do diploma legal supramencionado”.
Alice lamentou a postura da Força Naval e disse se sentir decepcionada.
“Sempre fui uma profissional com uma carreira exemplar. Sempre com boas avaliações, antes da transição. Após a transição, sequer deixaram eu curtir meu momento de alegria”.
A terceira-sargento também reiterou que toda a situação começou após a transição de gênero.
“Foi dali em diante, não demorou muito, eles enviaram um psiquiatra que saiu do Rio de Janeiro para ir até Ladário e que me submeteu a uma inspeção, sendo que eu sempre estive apta para o trabalho. Esse laudo de borderline quem me deu foi a Marinha, curiosamente após a minha transição. Por mais que eu já tivesse borderline eu já estava há 10 anos na Marinha. Eu nunca tive nenhum problema e mesmo durante o afastamento, continuei tendo acompanhamento psicológico. Os médicos deram os laudos dizendo que eu estou bem, não faz sentido”.
- Agosto de 2024
Segundo a defesa da militar, médicos da Marinha anotaram no prontuário de Alice “sinais notórios de melhora, lucidez, clareza de ideias, modos e gestos”. Ainda assim, a terceira-sargento teria sido mantida fora do trabalho, extrapolando o tempo máximo de afastamento permitido.
- Novembro de 2024
Na petição em que pede reincorporação e indenização, Bianca também argumenta que os afastamentos recorrentes desde 2021 “levantaram muitas suspeitas de que poderia estar em curso uma tentativa de burlar a permanência (de Alice) no serviço ativo”.