Capítulo do livro "Militares pela cidadania". Cortesia para usuarios CADASTRADOS.
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II – CONSTRUÇÃO DO MILITAR BRASILEIRO. (A internalização do espírito militar).
Diante de tantas controvérsias e preconceitos acerca da profissão militar e suas peculiaridades faz-se necessário explicar os mecanismos de construção desse profissional que serve aos núcleos coercitivos do Estado contemporâneo, que são as forças armadas, polícias militares e bombeiros militares.
Heróis do passado, gestos, bandeiras, uniformes, toques de corneta, galões, divisas, toques de apito, condecorações e dobrados marciais são símbolos que deixam bem claro aos soldados quais atitudes tomar e qual é o lugar que cada um deve ocupar no sistema, não só em formaturas para desfiles militares, mas também em outros locais, como campos de futebol, salas de jogos e restaurantes. Na maioria das vezes ignorados pela sociedade civil, os elementos simbólicos compõem o conjunto de tradições forjadas com o propósito de “atingir a alma e o coração dos jovens” (CASTRO. 2002). Segundo o General José Pessoa, Ex comandante da Academia Militar das Agulhas Negras, a intenção é construir: “(…) uma ideologia, que é um misto de brasilidade e sentimento militar, amalgamados pelo culto do passado, pelo espírito de tradição”. publicidade
Esta ideologia tradicional desenvolvida pelos/nos militares funciona como base do sistema de dominação que interioriza o espírito militar, e a inerente disposição, e até orgulho em se colocar como fiel cumpridor – assim como (supostamente) foram os heróis militares do passado – do que for determinado como seu dever dentro desse organismo. Ao custo, freqüentemente, do convívio familiar, de horas de lazer, de sua saúde, e, se necessário for, da própria vida.
Segundo o Estatuto dos Militares os deveres militares compreendem essencialmente a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida; o culto aos Símbolos Nacionais; a probidade e a lealdade em todas as circunstâncias; a disciplina e o respeito à hierarquia; e o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens.[1] O militar “é um técnico de profissão pública burocratizada, especialista na administração da violência e responsável pela segurança militar do Estado” (ALBERTINI. 2007). Valores e atitudes somente são reconhecidos como consoantes com a ética militar se forem derivados dessa especialidade. Notamos que os valores mais importantes para os militares são: Tradicionalismo, supremacia da sociedade sobre o indivíduo; preocupação com o cumprimento de ordens, hierarquização e divisão das funções; aceitar o Estado-nação como forma mais desenvolvida de organização política, reconhecer a permanente iminência de guerra entre países, entender a guerra como um instrumento político e exaltar a obediência como a grande virtude militar.
Pierre Bourdieu (2000) forjou um conceito amplamente utilizado, chamado hábitus. Este se trata do conjunto de pré-disposições, modos de perceber, de sentir, de raciocinar e de executar as tarefas, que nos leva a agir de determinadas formas, geralmente de acordo com os objetivos da classe dominante. Ainda segundo Bourdieu, a dominação sempre se exerce por meio da violência, embora esta nem sempre seja física; pode ser uma coação espiritual, o que significa que pode atuar diretamente sobre as consciências, tornando a norma estabelecida ainda mais difícil de ser desafiada.
O objetivo da (re) socialização militar é introduzir no jovem aluno das academias militares uma "nova” visão de mundo, que penetre no mais íntimo do indivíduo, construindo nele as pré-disposições ou inclinações para responder de formas prescritasa determinados estímulos. Nesse sentido entendemos então que os soldados ideais são construídos de forma extremamente cuidadosa, o que faz com que o modo militar de agir e reagir exista em suas mentes como se nunca houvessem sido paisanos. Gradativamente deixarão de perder tempo raciocinando acerca das respostas aos estímulos, sejam eles ordens, apitos, toques de cornetas etc. Estas devem vir da forma mais automática possível. A frase fazer no automático é constantemente repetida e consiste num dos principais objetivos a serem alcançados nas repetitivas e extenuantes series de treinamentos.
Para contextualizar o uso do conceito habitus dentro da sociedade estudada transcreveremos abaixo o depoimento de um militar – o Cabo Judas[2] – com mais de vinte anos de caserna.
Eu me graduei em história ha pouco mais de um ano (…) realmente cria que estava liberto do militarismo, mas, por conta de necessitar do salário de cabo da Marinha, continuava, na minha visão, a representar o papel de militar, tentava considerar que estava num emprego normal (…). Por duas vezes processei a Marinha por danos morais e abusos de autoridade, e meus colegas sempre me procuram para discutir acerca de punições etc. Um dia desses me decepcionei comigo mesmo e me dei conta de que não estou militar, eu sou militar. Eu caminhava por um corredor do quartel, de repente vi, no fim do corredor, que vinha um oficial muito conhecido por seu rigor, andando em minha direção. Imediatamente, sem sequer pensar, eu dei um jeito de entrar pela primeira porta que vi. Entrei e sentei numa cadeira vazia, de repente me lembrei que não tinha mais medo de oficiais, que era formado e somente representava o papel de militar. A princípio me envergonhei de mim mesmo, mas logo compreendi que não se “deixa de ser” assim tão facilmente. Descobri que eu não estava representando, eu era aquilo mesmo, reagia de forma automática, da mesma maneira que meus colegas de farda – Rapidamente saí da sala, ainda a tempo de cruzar com o oficial no corredor… Ele nem me notou.
São duas mentalidades distintas se digladiando dentro da mesma pessoa, militar versus historiador. No primeiro momento quem se destacou foi a mentalidade de militar, esta reagiu instantaneamente e da mesma forma que a maioria dos soldados, estes quando vêm um superior evitam passar por perto, é senso comum entre os militares que o subordinado está sempre errado. No segundo momento, de forma menos automática, a segunda mentalidade, de historiador, graduado etc., veio à tona – lembrando-o que não era necessário temer um superior – ao mesmo tempo que o fazia compreender o quanto seria difícil lutar contra tudo que havia aprendido em mais de vinte anos de serviço na Marinha.
As academias militares
Logo que são aprovados em concursos para as forças armadas os novos militares são enclausurados em instituições disciplinares, que segundo Foulcaut (1987), são a grande ferramenta para a moldagem dos que ali são internados. Esses locais são preparados especificamente para introduzir os indivíduos na vida castrense, são chamados comumente de academias militares ou centros de adestramento. No Brasil temos várias instituições desse tipo, citamos, entre muitos: a Academia Militar das Agulhas Negras, Escola Naval, as Escolas de Aprendizes Marinheiros e vários quartéis que recebem jovens para prestar o serviço militar obrigatório. Nesses locais os neófitos são adestrados para aprender a interpretar e interagir com o conjunto de códigos e o sistema de padrões comportamentais necessários à vida militar. Segundo Bourdieu (2000): esses sistemas simbólicos submetem o agir e o pensar dos agentes de forma lenta e velada, (…) assim concebidos, proporcionam uma concepção homogênea do mundo, do tempo e do espaço. Nos ambientes militares há um amplo e constante investimento na produção de consenso acerca do que é e como é “ser militar”. Todos, independentemente de ter ou não funções de instrutores, tem responsabilidade em cooperar com a socialização dos recrutas. Toda a “comunidade” aquartelada participa do processo, tornando-o tão eficaz e de uma amplitude tal que os militares desenvolvem entre si sentimentos de unicidade e de pertencimento chegando ao extremo de se considerar uma categoria superior de seres humanos. Slogans como: “o militar é superior ao tempo” e “eles (os paisanos) querem, mas não podem ser militares” são comumente cantados nos momentos de marchas e manobras.
Para que o processo alcance o resultado esperado é necessária uma ruptura violenta com o mundo civil, quando se impõe a submissão irrestrita àqueles que adentraram antes no universo militar. Um dos primeiros momentos do processo de reconstrução age exatamente sobre o que é de mais valioso e particular para o ser humano, o corpo. Este deixa de pertencer ao indivíduo. Para deixar bem claro aos novos alunos que seu corpo não mais lhes pertence, que a partir do ingresso nas forças armadas ou auxiliares é propriedade do Estado, representado pelos seus superiores hierárquicos, os alunos mais antigos têm, temporariamente, o direito de comandar os calouros, aplicando-lhes o famoso trote[3]. Castigando seu corpo – impondo exercícios físicos extremos – surras, afogamentos, arrastar na lama etc. Outro momentoextremamente simbólico é o corte de cabelo reco, que torna todos iguais. Ao mesmo tempo em que faz o jovem militar, geralmente recém saído da adolescência – normalmente uma fase em que se têm cuidados exagerados com a aparência – se sentir ridículo, e, devido a isso, desprovido de qualquer vontade de ter contato com seus (ex) amigos paisanos.
O ambiente militar se torna então o único lugar onde o novato não se sentirá ridicularizado, e quanto mais seus ex-amigos (paisanos) estranharem sua aparência e novas atitudes, mais identificado ele será com sua nova vida, com seu novo mundo. O novo-militar sabe que todos que estão no quartel, administração, instrutores e alunos mais antigos, passaram por aquele mesmo processo, e isso é um importante tipo de consolo, ao mesmo tempo em que aumenta sua identificação com a classe. Com o passar do tempo, na medida em que for se militarizando, será cada vez mais aceito, tanto pelos seus pares quanto pelos superiores hierárquicos. E ao mesmo tempo irá gradativamente desenvolvendo a estrutura mental de oposição entre o militare o paisano. O novo-homem é reconstruído[4] de acordo com a necessidade da instituição, o objetivo é fazer com que se sinta parte de um corpo, se comportando da forma que necessita este corpo. Na verdade as forças armadas denominam algumas de suas subdivisões exatamente assim, Corpo de praças da Armada, Corpo auxiliar feminino etc. Assim o militar preparado para ser um soldado de forças especiais vai adquirir um perfil mais rude, rigidamente militarizado devendo obedecer cegamente às ordens, enquanto um oficial do corpo de intendentes ou um cabo mecânico de aviões da FAB serão tipos menos militarizados. Além da profanação do corpo do neófito, que ocorre geralmente no trote, um dos muitos ritos de passagem que sofrerá durante sua vida na caserna, ocorre também nas escolas militares o furto da principal característica identitária do indivíduo – seu próprio nome – que lhe acompanha desde o nascimento. Este repentinamente é-lhe tirado, recebe então um número, ou um novo nome, afinal é um processo de (des) construção total. É então “batizado” com um nome de guerra, que será usado por toda sua vida de militar. O suposto recruta José Maria da Conceição Lopes, se pudesse escolheria como nome de guerra, Lopes, ou José. Mas, certamente, numa relação lúdico – autoritária, receberia como resposta dos alunos mais antigos, que seu direito é não ter direitos e provavelmente ganharia como nome de guerra outra parte menos desejável de seu sobrenome, doravante passaria a ser chamado de recruta “Maria” ou “Conceição”.
O cientista Canadense Erving Goffman (1974. p.11) cunhou uma frase interessante para explicar o que ocorre com os alunos das escolas militares e com internos de outras instituições fechadas, como manicômios e prisões. Estes, sendo despersonalizados, passam a corresponder ao padrão esperado para a instituição – é a “mortificação do eu” – termo tambémbastante usado nas igrejas evangélicas quando o fiel opta pela fé cristã, e ao abandono de todos os vícios e costumes que tinha antes de se decidir por Jesus Cristo. Celso Castro (1990) em seu trabalho sobre a Academia Militar das Agulhas Negras utiliza a frase: “Remoção do kit de identidade do mundo de fora”. Os processos de (re) construção mentais são altamente repe-titivos, com ambientes e horários regulados ao extremo; hora para almoçar, para estudar, hora para marchar, hora para dormir etc. Segundo Goffman, os indivíduos nas sociedades civis têm, em geral, tendência a trabalhar em um local, se divertir em outro e dormir em outro, interagindo com pessoas diferentes em cada um desses ambientes e sob regras e autoridades diferentes. Na sua concepção de instituições totais, Goffman destaca como principal característica: “a ruptura das barreiras que comumente separam essas três atividades da vida. Em primeiro lugar todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade”. O regime de internato, ou semi-internato, aplicado nas escolas militares cumpre à risca essa condição, pois todas as atividades são realizadas no interior do quartel.
Regularidade, exatidão e aplicação são também características marcantes das instituições de ensino militar, estas usam de tecnologia disciplinar para internalizar a visão de mundo que se espera dos recrutas.(…) tempo estritamente organizado também a partir dos moldes monásticos, (…) contam-se os quartos de hora, minutos, segundos[5]. Um militar narrando acerca de sua rotina ilustra bem esse rigor, para ele“a Escola de Aprendizes Marinheiros não foi ruim porque durou trezentos e sessenta e cinco dias, foi ruim porque o mesmo dia foi repetido trezentas e sessenta e cinco vezes”.
Os militares são indivíduos totalmente reconstruídos, todos os seus instintos e tendências os levam a agir em favor da instituição. Guerreiros e hábeis operadores das táticas e instrumentos da guerra, são adestrados para serem dóceis o suficiente para se submeterem a situações extremas de estresse, dor e excesso de trabalho.
Se algum militar pensar em contestar o sistema em que vive, terá que vencer primeiro seu próprio espírito militar, pois a princípio lhe parecerá a si mesmo estar agindo de forma errada. Sua razão pode até lhe indicar um comportamento, mas seus instintos militares, muito mais fortes, vão lhe impor a atitude esperada para um soldado. Como diz Pierre Bourdieu, seria ilusório crer que há facilidade em se vencer a violência simbólica. (…) [1]Estatuto dos militares, § 31.
[2]Pseudônimo.
[3]É de praxe, em instituições de ensino militares, os instrutores darem a oportunidade aos alunos mais antigos de comandar os calouros, para que seja efetuado o trote. Segundo Albuquerque (2003): É no trote que se “limpa” a condição de civil, de burguesinho, de patricinha ou mauricinho e prepara o novato para a inserção em um “nós” (…) diferentes do “eles”, os “civis folgados. (…) quando os alunos do último ano, únicos detentores legítimos do poder de aplicá-lo, serão agentes de uma série de práticas ambivalentes como brincadeiras que provocam dor e levam o calouro à exaustão e, às vezes, ao médico; (…) onde o novato terá de ridicularizar-se, apresentar-se em situações vexatórias, sentindo vergonha; atitudes carregadas de sadismo que, paradoxalmente, aproximam, como veremos adiante, os novatos dos mais velhos (…). Assim, a série de exercícios penosos, sustos, simulações de percursos de combatentes, prostrações e rastejamentos contribuem para dar uma antevisão das futuras provas acadêmicas que esperam os recrutas, enfatizando a necessidade destes adotarem uma postura corporal compatível com sua nova identidade. (ALBUQUERQUE. 2003, p.107)
[4](…) abalando as representações que eles têm de si mesmos, forçando-os a regredirem a estágios primários do seu desenvolvimento pessoal. Tornados crianças, os recrutas refazem seu percurso de seres socializados, predispondo-se a assunção da nova identidade sócio-profissional e pessoal. (Ibid. p.118) [5]Benelli (2003, p.2). —
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