As incertezas da hegemonia
Vários autores estimam que este novo século será mais ‘chinês’ que ‘americano’. Todavia, se em Washington a ‘obsessão chinesa’ é efetivamente uma realidade, os responsáveis políticos parecem, no entanto, hesitar face aos perigos de uma política de contenção “que, no caso da China, poderia ser nefasta à economia norte-americana” (Courmont, 2007: 1). O que sucede na prática é que os EUA preferem optar antes pela via ‘intermédia’, que consiste em isolar politicamente Pequim, mantendo simultaneamente uma parceria ativa no que respeita às questões económicas e comerciais.
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EUA-China: cooperação vs rivalidade
Perante tal contexto, pode-se afirmar que as relações sino-americanas são marcadas por uma ameaça potencial, ou revelam, ao contrário, uma vontade de cooperação? A resposta oscila entre estes dois extremos, mas como veremos, parece ser sobretudo marcada por um clima de suspeição mútua. De facto, nas relações entre Washington e Pequim, existe a possibilidade de uma colaboração frutuosa nos mais variados domínios. Mas, por outro lado, segundo B. Courmont, “os dirigentes americanos consideram a China, se não como inimigo ou ameaça à sua segurança, pelo menos, enquanto risco potencial” (2007: 1).
Na realidade, há desafios-chave, tais como “a competição política e económica na Ásia, a vontade chinesa de estender a sua soberania aos espaços terrestres e marítimos que ela considera seus, e sobretudo a questão de Taiwan” que, em conjunto, “continuam a comportar riscos sérios de tensão, ou mesmo de afrontamento, inclusivamente no plano militar” (Heisbourg et al, 2004: 17).
De acordo com Benoît Charpentier e Christophe Reveillard, “a omnipresença e a desconfiança americana face à China é percebida como um isolamento, uma dominação injusta, e um obstáculo à concretização dos objetivos estratégicos chineses, em particular, o seu abastecimento energético, já que a China se tornou fortemente dependente de energia” (2007: 265).
Se tal ‘isolamento’ está longe de ser irreal, já que Washington tenta fazer de tudo para que a China permaneça uma ‘média potência’, Pequim não quer ser relegada a segundo plano. Entre outros aspetos, o Império do Meio conta “antes de mais recuperar Taiwan, por razões estratégicas, mas também, fundamentalmente políticas (o princípio de uma ‘única China’) e, enfim, retomar a hegemonia comercial do Pacífico fazendo encerrar as bases americanas e encorajando a diáspora” (Fouchet, 2001: 3).
No fundo, as ambições e estratégias das duas potências “jogam-se nos mesmos terrenos” pois Pequim e Washington “querem simultaneamente assegurar-se da diversificação das suas fontes de matérias-primas, mas também, controlar os gestos do outro”: elas “interessam-se de novo por África, que era tida como ‘esquecida’, e aproximam-se sensivelmente da Índia” (Charpentier e Reveillard, 2007: 266). Em todos estes esforços, que se concentram na busca de influência e de recursos pela China e pelos EUA, o nacionalismo que ‘unifica’ os chineses em torno de um futuro ‘glorioso’ não parece ser compatível com o ‘recalcamento’ das ‘injustiças’ percebidas pelo Império do Meio. Dito de outra forma, a China está a tornar-se muito crítica face à política norte-americana na Ásia ao longo dos últimos anos (Courmont, 2007: 3).
Por sua vez, a política norte-americana tornou-se mais firme do que no passado. Mas isto não impede, contudo, que ela comporte uma certa ambivalência. Com efeito, os termos “strategic partner” e “strategic competitor” parecem sobrepor-se “em função das circunstâncias e das influências políticas e ideológicas que definem a perceção que Washington tem da China” (ibidem). Seja como for, o misto de “prudência tática e de indeterminação estratégica”, de que é feita a política chinesa dos EUA, não visa no entanto, o choque perigoso entre os interesses chineses e americanos (Heisbourg et al, 2004: 24). Segundo B. Vermander, “os EUA querem absolutamente evitar deixar-se envolver numa espiral conflitual com Pequim”, assim como a China que, por sua vez, procura “não meter em perigo uma relação comercial essencial ao crescimento económico, peça-chave da manutenção da estabilidade social” (2004: 104). Efetivamente, um outro autor, Robert Sutter, adverte que indo contra os interesses de Washington, a China “poderá colocar em risco a estabilidade (muito importante para a sua modernização e para a da Ásia do Sul), forçaria os países asiáticos a escolher entre os EUA e a China, e afastaria dela a maioria dos dirigentes asiáticos (que pretendem evitar a instabilidade)” (2003-04: 77).
Apesar dos desafios que fazem da China e dos EUA parceiros, parece, na opinião de numerosos analistas, que a rivalidade e a desconfiança superam a cooperação entre os dois países. Certos autores veem mesmo a confrontação entre estas duas potências como inevitável, a médio ou longo prazo. Tal constatação funda-se nomeadamente na política de modernização vigorosa do armamento chinês. Verificamos que os EUA se encontram numa posição delicada já que, como sublinha B. Courmont, Washington não pode nem “impor uma parceria durável” nem aceitar a China “como sendo o inimigo supremo” (2007: 3). Digamos que o estatuto que a China adquirir em função dos acontecimentos, ditará então o seu comportamento: continuar, ou não, a cooperar com os norte-americanos.
China: uma ameaça ao hegemon?
Poderá a China ser considerada uma ameaça ao poder dos EUA?
Para António de Sousa Lara, a visão da China enquanto ‘concorrente estratégico’ (acima referida) não é um mito, mas realidade. De facto, de acordo com o autor, Pequim é “um concorrente estratégico na medida em que a capacidade produtiva chinesa já provou ser perfeitamente bombástica, até porque a China não tem problemas laborais nem de falta de mão-de-obra, nem em termos sociais e legislativos” (entrevista pessoal, 2010). Pelo contrário, contando a China oficialmente com 65 milhões de presos (o que representa um número superior ao dos habitantes da Península Ibérica, não se podendo todavia confiar nos números oficiais chineses pois são quase sempre manipulados), o cenário pode revelar-se preocupante para o hegemon. Como adverte Sousa Lara, “utilizar todo este potencial humano para trabalho escravo, é já uma concorrência complicada e desleal” (ibidem). Mas o autor vai mais longe, sublinhando que se “até aqui havia um problema de baixa tecnologia e de produtos baratos”, agora os chineses estão “a comprar marcas europeias (à semelhança do que se passou recentemente com a Volvo) e, portanto, vão reciclar não só o seu Know-how, como também a estética e tudo o resto” (ibidem).
Enquanto para A. Sousa Lara, a China “é uma ameaça” aos EUA, mais concretamente, “aos produtos norte-americanos”, na opinião de Adriano Moreira, a questão tem de ser analisada através de um outro ângulo. Para este autor, não são os EUA que devem absorver a nossa atenção. O nosso olhar crítico acerca da conjuntura internacional deve, antes, concentrar-se em algo mais vasto, mas essencial: o Ocidente. E porquê? Porque para A. Moreira a redefinição do conceito estratégico da NATO, continua erradamente a imaginar que é o Atlântico norte que está em jogo. Ora, “é o Ocidente que está em causa porque, em primeiro lugar, é ele que está em crise e, depois, porque foi ele que a causou” (Moreira, entrevista pessoal, 2010). Nesse Ocidente está a Europa, mas esta é atualmente um espaço bastante débil. Como nos diz o autor, “os europeus estão hoje dependentes de matérias-primas e de energias não-renováveis, que eram supridas pela supremacia imperial e que, neste momento, não o são” (ibidem). Tais recursos são atualmente disponibilizados pelo que A. Moreira denomina ‘o resto do mundo’, que engloba ‘os poderes emergentes’. Aliás, o autor adverte que “os EUA são um grande país, têm muitos recursos, mas o ‘resto do mundo’ é maior” (ibidem).
"[…] a China dificilmente constituirá uma ‘ameaça’ ao Ocidente e/ou aos EUA, a não ser, paradoxalmente, a ela própria."
À parte a discussão EUA – Ocidente, como é que devemos interpretar os sinais dados pela China no xadrez internacional? Estará ela em condições de ser a próxima superpotência? A. Sousa Lara não duvida: a China já o é. Para o autor, neste momento, Pequim “detém uma parte substantiva da dívida externa americana, é um parceiro incontornável, um colosso demográfico, territorial, financeiro, económico, militar” (Op. Cit.). Contudo, ressalva que, por causa da história do país, não lhe parece que os chineses queiram ter uma projeção transcontinental: “Eles são mais respeitadores de um todo, desde que não se lhes mexa nas zonas de influência periférica” (Taiwan é um exemplo do que, na opinião do autor, não pode ser tocado) (ibidem).
Ao contrário de S. Lara, Narana Coissoró não vê na China uma superpotência, nem para já, nem num futuro ‘relativamente próximo’. Não é que a China não queira “estar em pé de igualdade com a América”, como afirma o autor, contudo os EUA têm “um sistema económico facilmente maleável que a China ainda não possui” (Coissoró, entrevista pessoal, 2010). Na verdade, de acordo com N. Coissoró, “quando se fala de mercado e da liberdade de mercado, há uma democracia económica que ainda não está bem enraizada na China” (ibidem).
Prudente na análise que faz da conjuntura internacional, A. Moreira, por sua vez, revela ser difícil, ou mesmo um pouco arriscado (segundo o próprio), afirmar que a China tem condições para ser a próxima superpotência num futuro não muito distante. A razão para tal reside no facto do país “ter separatismos porque a China tem umas cinquenta nacionalidades” (Op. Cit.). Efetivamente, o país tem separatismos, o que direta ou indiretamente, acaba por se refletir na forma como a China se afirma regional e mundialmente. Todavia, este aspeto apontado pelo autor não explica, por si só, que seja ‘arriscado’ dizer que o Império do Meio será a próxima superpotência. Devemos ter em conta, para além deste, outros fatores que nos ajudam a compreender melhor porque é que a tese da ‘ameaça’ chinesa (face aos EUA ou, se quisermos antes, face ao Ocidente, como prefere A. Moreira) deve ser mitigada. Na verdade, apesar de ser evidente que a China tem crescido economicamente a um ritmo impressionante ao longo dos anos, é, também, indiscutível que um tal vigor económico tem sido acompanhado de imensos problemas internos. Tais obstáculos são pedras em que a próprio país tropeça. Sem antes procurar limpar o seu caminho, isto é, sem primeiro ‘arrumar a casa’, a China dificilmente constituirá uma ‘ameaça’ ao Ocidente e/ou aos EUA, a não ser, paradoxalmente, a ela própria.
Notas
1CHARPENTIER, Benoît, REVEILLARD, Christophe, 2007, “La puissance chinoise au risque de la mondialisation”, in Géostratégiques- La Chine, n° 17, septembre.
2COURMONT, Barthélémy, 2007, “Un siècle américain, ou chinois?”, in Regard de Taiwan, n°9, juin.
3COISSORÓ, Narana, Entrevista pessoal, 23 de Maio de 2010, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
4FOUCHET, Gérald, 2001,“Vers une nouvelle guerre froide États-Unis – Chine”, in Geostrategiques, nº 3, Institut international d' études stratégiques, mars, www.strategicsinternational.com
5HEISBOURG, François (et al.), 2004, Emergence d’une superpuissance – La Chine: partenaire ou adversaire?, Fondation pour la Recherche Stratégique.
6LARA, António de Sousa, Entrevista pessoal, 12 de Maio de 2010, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
7MOREIRA, Adriano, Entrevista pessoal, 10 de Maio de 2010, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa.
8VERMANDER, Benoît, 2004, “La Chine ou le temps retrouvé”, in Ceras – revue Projet, n°278, janvier.