A China e o Ártico: breves notas
A 26 de janeiro de 2018, o Gabinete de Informação do Conselho de Estado chinês publicou um livro branco intitulado China’s Arctic Policy. Nas linhas que se seguem procurarei levantar e responder a algumas questões, para que o leitor possa inteirar-se melhor acerca do que está em causa.
Que objetivos de investimento – sobretudo, os ligados a infraestruturas – poderão estar associados a esta nova direção política?
Há muito que o Governo central vinha sendo persuadido por estrategas e académicos chineses a adotar uma ‘estratégia oficial’ para o Ártico, abandonando assim a sua postura tradicionalmente passiva face à região. A China fê-lo finalmente. Mais do que objetivos de infraestruturas, existe uma lógica de sobrevivência política, uma sobrecapacidade económica, uma busca de novos mercados, uma classe média em crescimento, que pode e quer uma dieta mais vasta, e, tão ou mais importante, uma crescente necessidade energética. Somemos todos estes fatores, aos quais acresce ainda o contexto de um planeta demasiado pequeno e onde os recursos são escassos. A China investe tradicionalmente em regiões remotas, muito com base na máxima de que quanto maior o risco, maior a oportunidade. Países como a Islândia ou regiões como a Gronelândia (figura 1) fazem todo o sentido no contexto de uma eventual Rota da Seda polar, na medida em que são dotados de abundantes recursos alimentares e energéticos. Por outro lado, a presença de competidores nestas regiões ainda não é acentuada. Fonte: www.wsj.com/articles/SB10001424127887324619504579028944070317778
Perante a ausência de infraestruturas, inclusive meios de salvamento, bem como a necessidade de tecnologia de ponta (com altos custos inerentes) para explorar águas geladas, muitos investidores adiam sucessivamente projetos ambiciosos nestas regiões. Todavia, a China percebe que o seu futuro demográfico e energético requer a construção e consolidação de uma presença na região. Em verdade, os líderes políticos e homens de negócios chineses estão cientes de que o derretimento do gelo é suscetível de trazer oportunidades extraordinárias ao país mais populoso do mundo.
Que fatores dificultam um maior uso das rotas comerciais através do círculo polar ártico?
A navegação polar ao longo das costas russas, chamada Rota Marítima do Norte (figura 2), permite uma poupança temporal de duas semanas em relação aos cerca de 40 dias utilizados no percurso marítimo convencional entre a China e a Europa.
Fonte: https://undertheangsanatree.blogspot.tw/2014/09/the-northern-sea-route.html
Contudo, por muito que as alterações climáticas tenham vindo a acelerar o derretimento do gelo polar, a travessia do Ártico é sobretudo sazonal. Além disso, existem vários obstáculos inerentes à navegação polar. A título de exemplo, o lançamento de navios porta-contentores de última geração, com mais de 400m de comprimento, largura de mais de 49m e um calado superior a 15m, não consegue cruzar o Mar de Laptev (figura 3), que possui dois estreitos que bloqueiam a passagem a este tipo de navios.
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f0/Laptev_Sea_map.png
Acresce que se estes navios literalmente gigantes estão em funcionamento, a economia de escala é melhorada e, portanto, o uso do Ártico menos relevante. Por outras palavras, ao permitirem o transporte de mais contentores, através das vias marítimas tradicionais (as que não cruzam o Ártico), estes novos navios tornam mais rentável a continuidade no uso das rotas marítimas convencionais. Por outro lado, a utilização da rota polar requer embarcações quebra-gelo a escoltar navios de carga, além de todo um serviço de salvamento e emergência que é, por ora, praticamente inexistente. Refira-se ainda que a cartografia marítima das águas polares carece de (mais) sofisticação para permitir uma navegação segura.
Que impactos pode o posicionamento chinês face ao Ártico ter para outras grandes potências?
Esta é uma questão importante. Não é por acaso que a China tem estado mais ativa na Antártida (a construir bases polares) que no Ártico. É que ao contrário do Ártico, na Antártida não existem países litorais (figura 4), como a Rússia, a Noruega, entre outros.
Fonte: www.theguardian.com/world/2012/jul/22/arctic-ice-melting-oil-drilling
Por outro lado, a postura chinesa face ao chamado Arctic Council e à navegabilidade do Ártico tem estado, de certa forma, refém do comportamento da China no Mar da China meridional. Por outras palavras, a China que sempre recusou a ingerência externa (seja dos Estados Unidos ou da convenção das Nações Unidas para o direito do mar) perante a sua alegada soberania no Mar da China meridional, tem legitimidade para vir agora defender a aplicação do direito do Mar a águas que a Rússia considera ser suas? Esta é uma posição curiosa, paradoxal e demonstrativa de uma realpolitik. Ou seja, a China não tem modo de ultrapassar a necessidade premente de acesso a recursos e mercados. São imperativos incontornáveis. O que está em causa é saber se, afinal de contas, a Rússia vai querer aplicar taxas de trânsito aos navios chineses (e aos de outros países) que cruzarem a Rota Marítima do Norte. Esta é uma situação sensível porque a Rússia e a China são dois grandes parceiros mas, ao mesmo tempo, dois grandes competidores. E a questão da soberania, na ótica chinesa e russa, não é passível de negociação.
A exploração dos recursos marinhos é salientada pelo livro branco chinês. Qual a sua relevância para a China? E, já agora, que paralelismo pode ser estabelecido face à cooperação científica chinesa nos Açores?
Eu diria que a logística e exploração dos recursos é a questão-chave. Agora, os documentos oficiais chineses são tradicional e propositadamente lacónicos, para não ‘abrir demasiado o jogo’ aos competidores. Mas qualquer bom entendedor sabe que a narrativa de um planeta sustentável, ou o estudo das alterações climáticas ou, lato sensu, a pesquisa científica são um conto interessante que visa justificar à comunidade doméstica e internacional a presença estratégica da China em determinados pontos do globo. O que a China está a fazer na Antártida e no Ártico é certamente ciência, mas bem mais que isso: é construir e depois consolidar uma presença a médio e longo prazo.
Na Antártida, onde a China constrói bases sucessivas, e até já tem um esquadrão aéreo, existe um protocolo de interdição de perfuração da região que expira em 2048. Quem investiga e fala o mandarim, como Anne-Marie Brady[1], é claro: a China quer acesso aos recursos. Os Açores não ficam muito longe desta estratégia que, não sendo polar, é fundamental do ponto de vista da localização, assim como Djibouti e, no futuro, a meu ver, também Cabo Verde. É tudo uma questão de tempo. O que a China está a fazer já foi feito muitas décadas antes pelos Estados Unidos: uma grande potência mercante necessita de uma marinha de guerra e de pontos logísticos no Oceano, além, naturalmente, de um acesso ininterrupto aos recursos.
Paulo Duarte, PhD / Especialista na Nova Rota da Seda chinesa / [email protected]
[1] Brady, A. (2014). “China’s Antarctic Rights and Interests”. China Policy Institute Blog, The University of Nottingham, October 29.
Publicado em Revista Sociedade Militar – Geopolítica – China