“A atividade jornalística como um todo deve ser resguardada como indispensável instrumento e dimensão da liberdade… A presença de militares na governança do Poder Executivo conduz, automaticamente, que sua atuação seja submetida ao escrutínio da crítica democrática”.
Adriana Alves dos Santos Cruz, em sentença favorável à Revista Sociedade Militar.
O artigo é atualizado na medida em que chegam novas informações.
A MARINHA do Brasil, por meio do Comando do Primeiro Distrito Naval, intimou o editor da Revista Sociedade Militar para responder sobre artigo publicado no site. O artigo trata de declarações feitas em 2019 por militar da força após decisão na comissão especial que estudava o PL1645/2019. No texto original está registrado o nome do militar entrevistado (após autorização do mesmo), data e local onde foram feitas as declarações, que incluem críticas contra deputados federais que são oficiais generais da reserva e comentários sobre a tramitação do projeto de lei em questão.
O entrevistado, depois de vários meses foi intimado pela força naval e – aparentemente sob orientação de seus defensores – decidiu negar que deu tais declarações que, segundo a MARINHA, podem ser consideradas como ofensivas à hierarquia e disciplina.
O jornalista responsável pela Revista Sociedade Militar foi também intimado. Na audiência e posterior acareação, o editor, que além de militar da reserva remunerada é empresário, sociólogo e jornalista profissional, se negou a prestar qualquer informação que possa ajudar na identificação de fontes consultadas para a elaboração do artigo.
Uma pausa. Jornalismo é quase um sinônimo de texto na terceira pessoa. O jornalista quase sempre faz o papel de intermediário entre o protagonista da notícia e o leitor. Mas nesse caso, eu – o jornalista – sou uma parte da notícia – portanto – desse ponto em diante passo a discorrer em primeira pessoa e a escrever como quando converso, de forma bem informal, brincando com as palavras – como sempre. Tratando pessoalmente com meus amigos leitores me sinto mais a vontade me expondo diretamente e deixando bem claro que sou eu um dos protagonistas desse caso, que na minha visão – diante da situação atual vivida no país – deveria receber a atenção da OAB e da Associação Brasileira de Imprensa, da qual sou membro.
A experiência nos ensina que nesse país as coisas que acontecem nas sombras tendem a ser muito perigosas. Daí vem a decisão de expor essa situação tão esdrúxula, inusitada.
Sobre nosso site, a Revista Sociedade Militar tem – o que hoje poderia ser considerado até como um atrevimento – a característica de tentar imprimir o máximo de neutralidade em seu material. Assim como críticas duras a atos do governo e posicionamentos de lideranças políticas de direita – algumas ligadas as Forças Armadas, você também encontrará duras críticas e artigos apontando aspectos negativos de ações e propostas de esquerda, o outro lado do espectro político brasileiro. Elogios e artigos positivos também são direcionados a quem julgarmos que os merece, assim cremos que se faz jornalismo.
Uns nos chamam de comunistas, outros de fascistas, mas a esmagadora maioria dos leitores entende nosso posicionamento.
O disse me disse ou disse que não disse!
Retornando. A partir do momento em que alguém declara que não deu depoimentos para a Revista Sociedade Militar ele se coloca em uma situação de anonimato, de fonte oculta. E eu, como profissional de imprensa, mesmo que seja uma situação a posteriori em relação ao artigo publicado, tenho que respeitar isso.
Normalmente é a fonte que tem a exata noção sobre a necessidade ou não de se manter no anonimato. Se alguém declarou em depoimento formal que não deu declarações para um veículo de imprensa essa pessoa certamente tem suas razões e de forma alguma seria eu aquele que iria desmenti-lo.
A Marinha, a partir daí, investiga se foi ele mesmo quem disse frases como: “oficiais generais tem que comandar dentro do quartel, aqui fora não, eles não representam a tropa…”.
Bem, é complicado – vou tentar de novo já que vi comentários que indicam que alguns leitores não entenderam muito bem – um emaranhado de palavras talvez explique a coisa. O cara resolveu dizer que não disse o que a revista Sociedade Militar disse que ele disse. E as leis que regem o comportamento ético do jornalista ou de qualquer um que exerce atividades relacionadas a imprensa prescrevem que NINGUÉM PODERÁ SER OBRIGADO A REVELAR A FONTE consultada para matéria jornalística.
Entenda, eu sou provavelmente a única pessoa que pode fornecer uma prova sobre quem é realmente a fonte usada no artigo em questão. E isso deve ser feito por meio de um depoimento formal. Todavia, ninguém vai me colocar em confronto com outros militares, muito menos com aqueles que no momento lutam para melhorar as normas relacionadas às Forças Armadas. Não vai ser eu quem vou dizer, sob pressão ou não, que alguém fez ou não uma declaração que pode comprometê-lo.
Pelo que fiquei sabendo por parte da própria fonte, a frase que causou toda essa indignação foi direcionada aos deputados federais que insistem em – infringindo o Estatuto dos Militares – que é uma lei, usar as designações hierárquicas de general Girão e General Peternelli. De fato, ocorreram várias discussões entre esses parlamentares e graduados que estavam na câmara dos deputados.
Estatuto dos Militares Art. 28. … XVIII – abster-se, na inatividade, do uso das designações hierárquicas: … e) no exercício de cargo ou função de natureza civil, mesmo que seja da Administração Pública…”
Para defender meu direito ingressei com um pedido de Habeas Corpus para que não pudesse ser obrigado a comparecer a depoimento e/ou acareação feito no Primeiro Distrito Naval. A justiça me atendeu somente em parte, tive então que comparecer à audiência. Mas, a juíza manteve meu direito de permanecer em silêncio.
A juíza ADRIANA ALVES DOS SANTOS CRUZ disse: “o objetivo da acareação é extrair do paciente informação que confirme ou contraste as declarações do sindicado, o que viola seu direito constitucional de manter o sigilo da fonte. Registro que o paciente já afirmou em depoimento prévio que avalia necessária a preservação. A atividade jornalística como um todo deve ser resguardada como indispensável instrumento e dimensão da liberdade. A necessária circunscrição da atividade do poder estatal se mostra especialmente necessária no caso presente, para clareza das autoridades do seu campo de atuação constitucionalmente autorizado. Isto porque a presença de militares na governança do Poder Executivo conduz, automaticamente, que sua atuação seja submetida ao escrutínio da crítica democrática.”.
Após realizada as audiências e devidas acareações a Advocacia Geral da União – haja vista a previsível insatisfação da MARINHA em não receber qualquer ajuda da minha parte, ingressou com recurso em sentido estrito com a intenção de derrubar o Habeas Corpus. Alega o advogado da União que permitir que um jornalista mantenha o sigilo sobre fonte nessa questão envolvendo militares abre “perigoso precedente”.
“ … a decisão, ora recorrida, cria perigoso precedente no sentido de não permitir a devida apuração de responsabilidade em declarações veiculadas em material jornalístico, bastando que o responsável, de um lado, negue o fato e, de outro, o jornalista alegue o sigilo da fonte.”, é o que disse a AGU
Ouso inverter a colocação feita pela Advocacia Geral da União, dizendo que forçar um profissional a quebrar seu código de ética e a ir contra diversas decisões em instâncias superiores que o amparam é que abre um PERIGOSÍSSIMO PRECEDENTE.
No mesmo artigo outro militar, que preferiu o anonimato, também deu declarações fortes sobre o processo político que estava em curso. Qual será o próximo passo da UNIÃO, tentar fazer com que o editor da REVISTA Sociedade Militar revele seu nome?
“ … já estamos ganhando, a defesa com toda a sua estrutura ficou acuada, com medo de passar vergonha e se for para o plenário, como vocês mesmo disseram na RSM, vai ser uma vergonha para os generais, disse o Suboficial Silva”. Artigo publicado em 29 de outubro de 2019
Não podemos colocar a liberdade de imprensa e dever de manter sigilo funcional nem dos jornalistas nem de outros profissionais como médicos, advogados e professores que são militares da reserva debaixo dos coturnos dos oficiais generais. A justiça tem que estar vigilante porque vivemos um período atípico, a presença maciça de militares no poder pode dar alguns a impressão de que generais teriam braços mais longos do que realmente têm e, me valendo aqui de parte da bela decisão no HC a favor da revista Sociedade Militar, completo dizendo que: “ a necessária circunscrição da atividade do poder estatal se mostra especialmente necessária no caso presente, para clareza das autoridades do seu campo de atuação constitucionalmente autorizado”.
Convenhamos, que credibilidade tem o jornalista que revela fontes ou de alguma forma contribui para que as mesmas sejam identificadas?
Da minha parte esse preceito ético jamais será quebrado. Acredito, como coloquei acima, que essa situação é extremamente importante na medida em que pode ou não embasar ações futuras no sentido de tolher a liberdade de expressão e direito ao sigilo da fonte.
Se preciso for a Revista Sociedade Militar irá até Supremo Tribunal Federal. Há inclusive vários amigos advogados que reconhecem a relevância do assunto e estão interessados em ajudar nesse caso, conduzido pelo Dr. Cláudio Lino. Agradeço muito e serão acionados se for necessário. Não perderemos, mas mesmo que perdêssemos, ninguém me obrigaria a revelar uma fonte ou concorrer minimamente para a identificação de alguma pessoa que entrou em contato conosco ou foi entrevistada.
Abaixo o esboço (bem tosco, não sou advogado) que enviei para meu defensor com o objetivo de ajudar a embasar sua defesa em grau recursal do nosso direito. Cláudio Lino é um dos advogados mais bem preparados do país no que diz respeito a esse tipo de enfrentamento, mas mesmo assim enviei, sou meio intrometido e gosto de um textão.
Como disse a juíza ADRIANA ALVES DOS SANTOS CRUZ: “A atividade jornalística como um todo deve ser resguardada como indispensável instrumento e dimensão da liberdade. A necessária circunscrição da atividade do poder estatal se mostra especialmente necessária no caso presente, para clareza das autoridades do seu campo de atuação constitucionalmente autorizado. Isto porque a presença de militares na governança do Poder Executivo conduz, automaticamente, que sua atuação seja submetida ao escrutínio da crítica democrática…”
Esboço enviado para o advogado //
Já obtivemos decisão favorável muito bem fundamentada pela autoridade judiciária, a mesma é irretocável. Todavia, já que a AGU acrescenta em seu arrazoado questões totalmente fora do contexto em um pleito que deve ser discutido com base na normatização que versa sobre liberdade de imprensa, sigilo sobre a fonte e outras questões relacionadas à profissão de jornalista, não poderíamos deixar de mencionar que a UNIÃO representando a MARINHA DO BRASIL, interpreta de forma extremamente equivocada e tendenciosa o regramento jurídico relacionado aos militares das Forças Armadas.
Segundo consta nos regulamentos disciplinares, citados pela própria Advocacia Geral da União, o militar não pode “tecer críticas públicas à atuação de superiores hierárquicos”. De fato esse item do regulamento existe, mas é aplicável somente a militares da ATIVA.
A lei 7.524 de 1986 é bem clara quando diz que o MILITAR DA RESERVA, salvo em caso de questões de caráter interno e sigiloso, pode externar pensamento sobre matéria pertinente a interesse público, independente do que consta nos regulamentos disciplinares.
Cito ainda uma declaração extremamente relevante da ex-procuradora Geral, Raquel Dodge, que disse: ” É que o militar inativo está afastado do convívio castrense diário e não mais possui ascendência funcional capaz de oferecer risco à disciplina e hierarquia, com consequente caracterização de insubordinação. Além disso, a divulgação de opinião do militar da reserva ou reformado não tem a mesma aptidão que a de um militar da ativa para trazer descrédito à instituição militar” (1).
“ Respeitados os limites estabelecidos na lei civil, é facultado ao militar inativo, independentemente das disposições constantes dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria pertinente ao interesse público. Parágrafo único. A faculdade assegurada neste artigo não se aplica aos assuntos de natureza militar de caráter sigiloso e independe de filiação político-partidária. — lei 7.524 de 1986”
Aqui ressaltamos que a discussão expressa no texto da Revista Sociedade Militar, cerne de todo esse imbróglio, não trata de assunto restrito, tudo se relaciona com um projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional e à discussões entre militares da reserva e parlamentares, estes últimos também militares na reserva.
As questões tratadas no Habeas Corpus 5042602-48.2020.4.02.5101 que tramita na justiça federal do Rio de Janeiro envolvem MILITAR DA RESERVA remunerada, como acima colocado, que exerce atividade profissional de jornalista e é legalmente autorizado pelo Ministério do Trabalho a fazê-lo, sendo inclusive proprietário de uma empresa de jornalismo, legalmente registrada e que mantém online o site Revista Sociedade Militar e outros.
Estariam todas as profissões e atividades exercidas por militares na reserva remunerada sujeitas ao escrutínio das instituições militares, colocando códigos de ética, regras sobre sigilo funcional e liberdade de expressão debaixo da sola dos coturnos dos generais, em degraus abaixo dos regulamentos castrenses? Claro que não, isso colocaria eventuais clientes e empregadores dos militares da reserva que exercem as mais diversas profissões também sob o escrutínio das instituições militares, que – pelo que indica a réplica da AGU – almejam ter controle total sobre as atividades exercidas pelos militares mesmo após o serviço ativo regulado por legislação específica.
Seria um militar da reserva que atua como médico – caso exigido pelas Forças Armadas – obrigado a quebrar o sigilo funcional sobre dados que pacientes desejam manter em sigilo?
Seria um militar da reserva que hoje exerce a profissão de advogado obrigado a revelar segredos sobre seus clientes?
Preciso se faz invocar o nosso Código de Processo Penal, que diz em seu artigo 207: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. ”
Se o entrevistado – após orientação de seus defensores, obviamente tentando evitar a punição – nega que fez tais declarações, se coloca na condição de anonimato. Obrigar jornalista a confirmar se o mesmo disse ou não o que foi transcrito no artigo nada mais é – obvio – que exigir do profissional de imprensa que IDENTIFIQUE A FONTE.
Concordar com isso é colocar sua credibilidade e de seu veículo de imprensa em risco.
Disse a AGU: “a decisão, ora recorrida, cria perigoso precedente no sentido de não permitir a devida apuração de responsabilidade em declarações veiculadas em material jornalístico…”
As Forças Armadas e seu regramento jurídico não têm alcance ilimitado e a colocação da AGU de que a proteção ao jornalista, paciente do HC, abriria precedentes perigosos na verdade deve se aplicar de forma inversa, pois permitir que as Forças Armadas imponham sua vontade sobre profissionais que exercem atividades que não têm relação alguma com as mesmas é que abre um PRECEDENTE PERIGOSÍSSIMO, seria um retrocesso para tempos que não gostaríamos de reviver.
Coloca a AGU: “a acareação visa apurar se a transgressão foi efetivamente cometida pelo militar indicado na matéria, considerando que a informação jornalística tem compromisso com a verdade e o conteúdo divulgado é ofensivo aos superiores hierárquicos do militar.”
Ora, tanto o código de ética dos jornalistas como a própria CF1988 deixam claro para o profissional de imprensa e para qualquer um que trabalhe em veículos de comunicação, que fica a seu critério preservar ou não o sigilo da fonte. Não pode a Marinha do Brasil por meio da AGU ameaçar-lhe, que é o que faz ao usar dos regulamentos disciplinares, tentando obrigá-lo a romper com seu código de ética de forma arbitrária e ilegal com o objetivo de conferir se outro militar procedeu de forma ilícita. Seu silêncio na condição de profissional de imprensa é perfeitamente legal e recomendável sob o prisma da legislação brasileira.
“O ordenamento constitucional brasileiro, por isso mesmo, prescreve que nenhum jornalista poderá ser compelido a indicar o nome de seu informante ou a fonte de suas informações. Mais do que isso, e como precedentemente assinalado, esse profissional, ao exercer a prerrogativa em questão, não poderá sofrer qualquer sanção motivada por seu silêncio ou por sua legítima recusa em responder às indagações que lhe sejam eventualmente dirigidas com o objetivo de romper o sigilo da fonte…” RCL 21504 AGR / SP
1 Ministério Público Federal. Procuradoria Geral da República, N.º 24 /2019 – SFCONST/PGR. Sistema Único n.º 13730 / 2019. Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental 475/DF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339480206&ext=.pdf>.Acesso em 15 Dez. 2019. Grifei
2 Sentença HC REVISTA SOCIEDADE MILITAR
Robson Augusto – jornalista Registro Profissional 0039050/RJ Registro ABI E-002912