A Revista Sociedade Militar teve acesso a documentos que podem indicar que há setores das Forças Armadas, nos mesmos moldes do que ocorria no regime militar, debruçados sobre a investigação de cidadãos e até sobre os próprios militares.
Assim como ocorreu com os dossiês de monitoramento feito sobre parlamentares, montados em sigilo durante o processo de tramitação do PL1645 de 2019, esses documentos inicialmente chegaram à revista por meio de fonte que será resguardada em respeito à CF1988, art. 5º, inciso XIV, que assegura o direito ao “sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional“.
O lote de papeis é diversificado e parte do mesmo, contendo dois documentos, um dossiê sobre militares que a fonte mencionou como extrato dos “prontuários de inteligência” e um documento preparatório, já foi enviada para o Exército Brasileiro em 24/09/2021 por meio do canal oficial de solicitação de informações do governo federal. Solicitamos a confirmação do material e conteúdos inseridos nos mesmos.
O número do processo é 60143.004813/2021-17
Tipo de manifestação: Acesso à Informação
Esfera: Federal / Órgão destinatário: CEX – Comando do Exército
Questionado pela revista, o Exército Brasileiro negou que investiga militares e disse que não existe previsão regulamentar para o chamado prontuário de inteligência mencionado em uma das denúncias recebidas.
Quanto ao DOCUMENTO PREPARATÓRIO de ACESSO RESTRITO, denominado Conjuntura 01/19, do 34º BI MEC, este já foi confirmado pelo Exército, o que obviamente dá mais credibilidade à fonte e aos outros documentos inseridos no “pacote”. Esse material não será abordado nesse artigo. Por conter nomes de autoridades locais, dados sobre instituições e questões sensíveis sob diversos aspectos, preferimos adiar a publicação.
Os “IVOs”
O conteúdo do dossiê “IVOS DO 34º BIMEC”, embora – como mencionado acima – não reconhecido pela força terrestre, indicaria que setores de inteligência, ao contrário de realizar a atividade para a qual se destinam (assessoramento de alto nível, ligada à segurança nacional), poderiam estar debruçados sobre questões triviais e pessoais relacionadas ao dia a dia dos militares, como: quem estuda para concurso público, quem participa de jogos de baralho nas horas de folga, quais pessoas participam de reuniões sociais nas residências dos militares e até quem vende materiais por meio do mercado livre.
O Termo IVOs significaria, segundo o material recebido, “Inimigos Verde Oliva”.
Um dos “IVOs” teria sido apontado como sendo autor de várias denúncias apresentadas para o Ministério Público solicitando investigações sobre supostas irregularidades cometidas pela força terrestre. Outro foi citado no dossiê como tendo feito “ameaça de sair da força e fazer concurso para a PRF”.
A instituição negou que o documento tenha sido produzido pela força. Militares citados no dossiê, ouvidos pela Revista Sociedade Militar, declaram que não enxergam possibilidade de alguém “de fora” ter conhecimento de tantos dados pessoais sobre os mesmos.
O Exército, por sua vez, também declarou que “não monitora militares ou civis e que a atividade de inteligência somente é utilizada para questões de alto nível ligadas aos “interesses da sociedade brasileira“.
“A atividade de Inteligência é exclusiva de Estado e constitui instrumento de assessoramento de mais alto nível de seus sucessivos governos, naquilo que diga respeito aos interesses da sociedade brasileira. A missão da Inteligência Militar é apoiar o planejamento, a preparação, a execução e a avaliação das operações. Portanto, o papel mais importante que desempenha é o de servir de base para o desenvolvimento das operações, apoiando o processo decisório, numa atividade contínua e dinâmica.”, disse o Exército Brasileiro.
O famoso PRONTUÁRIO DE INTELIGÊNCIA nas Forças Armadas
Entre militares o assunto é uma espécie de tabu. Mas, quase todos os membros da reserva e ativa que foram questionados pela Revista Sociedade Militar nos últimos dias revelaram que têm conhecimento de que haveria de fato uma prática de observar-se comportamentos e inserir anotações em uma espécie de ficha individual, sem oferecer oportunidade para que o “fichado” se defenda.
“… a coisa se complica na medida em que um comandante não gosta de você e coloca lá coisas como _há indícios de que fulano participou de tal coisa ilícita e assim o cara fica com a chamada ficha suja sem sequer saber e sem poder se defender já que não sabe o que está lançado lá … ” Disse um suboficial ouvido pela revista.
Uma rápida pesquisa no Google mostra como primeiro resultado sobre a busca “prontuário de inteligência” um Habeas Data impetrado pelo advogado BRUNO GAYA DA COSTA MARTINS em favor de um oficial da Marinha. O militar alegava que foi prejudicado pela força, que não teria sido promovido ao posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra no Quadro de Cirurgiões-Dentistas do Corpo de Saúde da Marinha do Brasil porque a comissão de promoções teria decidido com base em anotações no seu “prontuário de inteligência”.
O segundo resultado encontrado no Google vem da própria Revista Sociedade Militar. É um artigo que versa sobre o comportamento de Jair Bolsonaro no passado.
Em artigo no site foi publicado um extrato do Prontuário de Inteligência ou Prontuário de Informações do hoje presidente da república. O documento não foi elaborado durante o regime militar, data de 1990, em pleno governo Collor, o que seria claro indício de que a força terrestre pelo menos até os anos 90 manteria entre seus procedimentos a confecção do chamado prontuário de inteligência, inclusive de militares.
Percebe-se claramente o texto grafado como “cópia Nº 1424 do prontuário de JAIR MESSIAS BOLSONARO“
Na resposta enviada pelo Exército Brasileiro à Revista Sociedade Militar destaca-se o trecho abaixo.
“O Exército Brasileiro não confecciona ´ficha ou prontuário de inteligência´ e não monitora militares ou civis. A atividade de Inteligência é exclusiva de Estado e constitui instrumento de assessoramento de mais alto nível de seus sucessivos governos, naquilo que diga respeito aos interesses da sociedade brasileira. A missão da Inteligência Militar é apoiar o planejamento, a preparação, a execução e a avaliação das operações. Portanto, o papel mais importante que desempenha é o de servir de base para o desenvolvimento das operações, apoiando o processo decisório, numa atividade contínua e dinâmica. No âmbito do Exército Brasileiro, a atividade de Inteligência está prevista no Manual de Campanha EB20-MC-10.207 Inteligência, 1ª Edição, 2015, aprovada pela Portaria nº 032-EME, de 23 de fevereiro de 2015. Os documentos de Inteligência são confeccionados em estrita obediência ao ordenamento jurídico brasileiro, pautando-se pela fiel observância aos princípios, direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição Federal, em prol do bem-comum e na defesa dos interesses da sociedade e do estado democrático de direito.”
Direitos fundamentais
“Entre os direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos — incluindo-se, portanto, os militares — está o contraditório e a ampla defesa. Enquanto o cidadão não sabe o que se registra sobre ele, em documentos considerados para o progresso de sua carreira, há um evidente desrespeito aos seus direitos mais básicos, como os citados acima. Além disso, a nossa Constituição Federal preceitua que toda a Administração Pública — neste conceito incluído a Organização Militar — deve respeitar uma série de princípios norteadores, dentre eles o da Publicidade. O sigilo de dados e demais informações deve ser sempre a exceção à regra e, em todo caso, exige-se fundamentação adequada da autoridade competente, em homenagem ao princípio da motivação dos atos administrativos.“, Diz Cláudio Lino, um dos advogados ouvidos pela Revista Sociedade Militar
Antipatia
Militares ouvidos pela revista acreditam que os prontuários de inteligência, documentos extra-oficiais onde constariam apontamentos que podem – em tese – ser feitos por superiores movidos por pura antipatia contra subordinados, têm sido utilizados como base para vetar a participação em cursos e causar outros prejuízos à carreira. A resposta do Exército, reiteramos, vai na linha oposta a essas afirmações.
” … O Exército não produz “fichas ou prontuários de informações” de militares e os processos de seleção para cursos, promoções e missões são regulados por portarias específicas da Força …”
No processo acima mencionado, movido pelo advogado BRUNO GAYA DA COSTA MARTINS, numerado como 2008.51.01.009114 (2A. VARA FEDERAL – NITERÓI/RJ), um oficial superior, preterido para promoção a capitão de mar e guerra, exige por meio de um Habeas data a apresentação do seu “prontuário de inteligência”.
A Marinha do Brasil foi obrigada a apresentar os documentos.
Trecho do acórdão emitido posteriormente no mesmo processo confirma a existência do prontuário de inteligência, uma espécie de dossiê oculto onde são registrados os atos de cada militar.
“Os autos contêm documento revelador de outra motivação não explicitada em ato administrativo por meio do qual a Comissão de Promoção de Oficiais (CPO) não incluíra o nome do autor no Quadro de Acesso por Merecimento… Os fatos narrados em documento sigiloso da Marinha, sobre os quais o demandante somente teve ciência graças à impetração de habeas data, apontam …”, disse o desembargador / relator GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
No mesmo processo o desembargador deixa claro que uma “anotação” em documento sigiloso e inacessível desse tipo não poderia ser utilizada para decisões relacionadas a carreira, já que não abre possibilidades para o necessário contraditório por parte do “investigado”.
“a não lhe ter sido oportunizado o exercício do contraditório e da ampla defesa… a há de se oportunizar àquele que não desfrute de indispensáveis conceitos o exercício da mais ampla defesa, facultando-lhe contradizer os fatos que lhe são imputados…”, e
“Conclui-se, diante da pormenorizada descrição dos comando legais e da situação fática e documental comprovada nestes autos, que o autor não teve a oportunidade de se defender de fatos desabonadores de sua conduta enquanto servidor público militar, pertencente ao oficialato da Marinha do Brasil, por ocasião de acesso à hierarquia militar quando de sua inabilitação em Quadro de Acesso visando à promoção pelo critério de merecimento.”
Segundo o Manual Técnico de PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO DE INTELIGÊNCIA, que é um documento ostensivo do Exército Brasileiro, não existe documentos chamados prontuário, prontuário de inteligência ou prontuário de informações na listagem de documentos a ser produzidos em atividade de inteligência.
Militares ouvidos
Ouvidos pela Revista Sociedade Militar, dois dos militares citados no “dossiê” recebido pela RSM alegam que fatos mencionadas correspondem a situações de sua vida particular, não necessariamente com uma interpretação correta, e que não imaginavam que estariam sendo monitorados por alguém.
Exibimos o conteúdo dos relatórios exclusivamente no que diz respeito a cada militar ouvido, com o objetivo de confirmar se de fato as informações são relacionadas a cada um deles. Todos confirmaram que as informações anotadas nos dossiês diziam respeito a situações que coincidem com o que vivem ou viveram.
Um dos militares ouvidos disse que sabe de um graduado de conduta ilibada que inexplicavelmente foi recusado para um serviço de Tarefa por Tempo Certo. Ele atribui isso aos prontuários de inteligência. Narra também que nas formaturas haviam oficiais que insinuavam que sabiam tudo sobre a vida particular da tropa, que havia fichas individuais contendo dados de cada um.
Outro militar declarou que esse tipo de coisa gerava desconfiança e medo entre os militares. “… fazem muito isso, influencia sim nas promoções… isso é um vespeiro. Não se sabia quem era quem, quem estava te espionando nas coisas mais simples…“.
Resquícios do Regime Militar
Observando as imagens nota-se que o documento atual guarda alguma semelhança com o que foi utilizado nos anos 60 para “fichar” cidadãos considerados como “subversivos”.
A prática de manter vivo o prontuário de inteligência, se comprovada, comprovaria que em alguns setores do país ainda se mantém resquícios do período militar. À época o documento era mantido por diversas instituições e nele eram inseridos informações sobre os indivíduos considerados como potencialmente perigosos, subversivos etc.
No estudo denominado “Analise Diplomática e Tipológica dos Documentos Repressivos“, apresentado na forma de monografia em 2014 na UFRGS, conta a seguinte definição sobre o chamado prontuário de inteligência.
BARCELLA, Grazielle Araujo. Terrorismo de estado: análise diplomática e tipológica de documentos repressivos: Fundo Tarso Dutra. 2014.
Por fim, os relatórios, que citam oficiais e praças, que já foram enviados para o Exército por meio dos canais de solicitação de informações, serão enviados para o Ministério Público a pedido da Revista Sociedade Militar, por meio de um advogado contratado, para que a instituição tome providências caso entenda que seja necessário, obviamente resguardaremos o sigilo da fonte.
Robson Augusto – Revista Sociedade Militar