A Ucrânia ocupa uma posição estratégica, na medida em que está situada em uma região que Vladimir Putin denomina de linha vermelha
A importância geopolítica da Ucrânia para Moscou
A crise entre russos, europeus e norte-americanos envolvendo a Ucrânia tem sido noticiada nos principais veículos de mídia do Brasil e do mundo. A escalada da crise envolvendo esses países e o consequente temor da eclosão de uma guerra, tem chamado a atenção da comunidade internacional.
Considerando a sensibilidade do fato em si, bem como a intensa dinâmica de tudo que ocorre no contexto dessa crise, torna-se importante entender em que medida a Ucrânia é importante para a Rússia, que não titubeou em se engajar em uma disputa política com a principal potência do mundo: os Estados Unidos da América.
E, assim, este artigo tem por objetivo analisar a importância geopolítica da Ucrânia para Moscou. Para tanto, ele destinará um olhar sobre a importância geopolítica da Ucrânia em seis distintas perspectivas: histórica, militar, psicossocial, econômica, política e estratégica. Dessa forma, acredita-se que será possível proporcionar ao leitor uma ferramenta que lhe permita compreender melhor a atual crise no Leste Europeu.
a. Importância histórica
Devido aos fortes laços históricos que unem ucranianos e russos há séculos, a Ucrânia ocupa uma posição muito relevante na história da Rússia. Nos séculos VIII e IX, o cristianismo foi trazido de Bizâncio para Kiev, religião que serviu de âncora para o estabelecimento da Rússia de Kiev, que foi o antigo Estado eslavo do qual russos, ucranianos e bielorrussos modernos extraem sua linhagem. Para sedimentar ainda mais essa relação histórica a cidade de Kiev, atual capital da Ucrânia, já foi a capital da Rússia de Kieve entre os séculos X e XII”
Outro fator histórico proeminente nessa relação é a Crimeia. Um fato que é importante grifar sobre a Crimeia é que a mesma fazia parte da Rússia até o ano de 1954. Nesse ano, debaixo do chapéu da ex-URSS e sob a justificativa de fortalecer os laços fraternais entre o povo ucraniano e o povo russo, o então líder soviético Nikita Khrushchev transferiu a Crimeia da Rússia para a Ucrânia. Entretanto, desde a queda da ex-URSS, o governo russo começou a ser pressionado por vários nacionalistas russos residentes na Rússia e na Crimeia para que a península retornasse ao domínio russo.
Foi nesse contexto que houve a tomada da Crimeia em 2014, evento divisor de águas nas relações internacionais, pois, desde a 2ª Guerra Mundial, foi a primeira vez que um Estado europeu anexou o território de outro Estado. Pouco comentado em terras brasileiras, esse conflito foi considerado como o mais sangrento da Europa desde as guerras dos Balcãs (eclodidas na década de 1990), tendo registrado mais de quatorze mil mortes.
b. Importância militar
Em termos militares, a Ucrânia ocupa uma posição estratégica, na medida em que está situada em uma região que Vladimir Putin denomina de linha vermelha. Em termos práticos, o país ou a organização que avançar essa linha, fatalmente gerará numa reação militar da Rússia.
Diante desse contexto, surge outro fator de relevo que tem incomodado as elites russas desde a década de 1990, qual seja: OTAN. O alargamento feito pela OTAN após a Guerra Fria tem gerado desconforto para Moscou. O movimento geopolítico mais audacioso feito pela OTAN em direção à Rússia ocorreu em 2004, ocasião em que a OTAN adicionou sete membros, dentre os quais se destacam as antigas repúblicas bálticas soviéticas (Estônia, Letônia e Lituânia), manobra que não foi bem digerida pelas autoridades russas, mas que não gerou reações de Moscou.
Entretanto, em 2008, quando a OTAN manifestou sua intenção de incluir a Ucrânia e a Geórgia em sua aliança militar, a Rússia deixou claro que uma linha vermelha havia sido ultrapassada. Nas semanas que antecederam a cúpula da OTAN em 2008, o presidente Vladimir Putin alertou os diplomatas norte-americanos que as medidas para trazer a Ucrânia para a aliança militar seriam consideradas como sendo um ato hostil à Rússia. Não por acaso, meses depois, a Rússia entrou em guerra contra a Geórgia.
c. Importância psicossocial
Conforme descrito anteriormente, a Rússia possui fortes laços históricos com a Ucrânia. Das 48 milhões de pessoas que vivem atualmente na Ucrânia, 8 milhões são russos que residem no sudeste ucraniano e que são favoráveis a uma aproximação com a Rússia. Sob a justificativa de zelar pelo bem-estar de sua população russa, Vladimir Putin reivindicou o dever de proteger essas pessoas como pretexto para realizar suas ações na Ucrânia.
A par disso, caso haja um movimento geopolítico que pendule a favor dos países ocidentais, tal fato poderá desencadear uma série de eventos importantes nas esferas regional e global. Dentre esses fenômenos, o destaque fica por conta de uma provável onda de refugiados russos residentes na Ucrânia indo em direção à Rússia. Caso isso ocorra, a mobilidade humana forçada fatalmente causará danosos efeitos colaterais para a Rússia e para o sistema internacional como um todo.
Os russos que vivem na própria Rússia são outro elemento psicossocial significativo. A intervenção da Rússia na Ucrânia em 2014 evidenciou que a maior parte da população russa foi favorável à anexação da Crimeia. Em pesquisa realizada logo após a anexação da Crimeia, os índices de aprovação de Vladimir Putin por parte de sua população aumentaram exponencialmente, alcançando mais de 80% de aprovação.
d. Importância econômica
Em termos econômicos, a Ucrânia ainda exerce papel central na economia russa. Em que pese a Rússia ter concluído, em meados de 2021, a construção do Nord Stream 2, gasoduto que se desenvolve sob o Mar Báltico e que liga a Rússia à Alemanha, constata-se que o mesmo não terá a capacidade necessária para escoar todo o gás natural que a Europa precisa e compra de Moscou. Dessa forma, a Ucrânia continuará ocupando uma posição central na economia russa, haja vista que a maior parte do gás natural que a Rússia vende para a Europa é, e ainda continuará sendo, escoada por gasodutos que passam pela Ucrânia, algo que movimenta anualmente cerca de dezenas de bilhões de dólares em taxas de trânsito para Kiev.
Além disso, a fragilidade econômica da Ucrânia requer atenção especial da Rússia. Para que se tenha uma ideia desse tabuleiro geopolítico, antes da crise em 2014, a Ucrânia era um dos principais destinos da ajuda externa dos Estados Unidos da América e recebia em média cerca de US$ 200 milhões por ano. Após 2014, Washington aumentou seu apoio a Kiev e passou a enviar mais de US$ 600 milhões anualmente.
e. Importância política
O colapso da ex-URSS e a consequente independência da Ucrânia na década de 1990 descortinaram a real importância política da Ucrânia para Moscou, pois muitos políticos russos viram o divórcio com a Ucrânia como sendo um erro fatal e uma derrota política histórica.
Na visão de Dungin, teórico mais influente na geopolítica adotada por Vladimir Putin, a independência da Ucrânia representou uma ameaça à posição da Rússia como grande potência. Nesse sentido, para Vladimir Putin, perder o controle permanente da Ucrânia e deixá-la cair na órbita ocidental significarão uma grande derrota e servirão de como um balde de água fria em suas pretensões de tornar a Rússia grande novamente.
Outro fator político substancial são os bônus políticos auferidos pela Rússia após o conflito com a Crimeia. Sob a perspectiva das relações internacionais, percebe-se que a maneira como se deu o conflito, sem a intervenção ou intromissão dos países ocidentais, acelerou o processo de mudança que já estava em curso no sistema internacional, que lentamente migrou de uma tese de segurança unipolar para uma realidade de segurança multipolar.
f. Importância estratégica
Em termos estratégicos, verifica-se que a importância estratégica da Ucrânia remonta aos tempos da ex-URSS. Nessa época, a Ucrânia era a segunda república mais importante da ex-URSS, ficando atrás apenas da Rússia.
Formava com a Rússia uma espécie de centro de gravidade do poder soviético, uma vez que a mesma era responsável por grande parte da produção agrícola soviética, abrigava parte do arsenal nuclear soviético, sediava boa parte da base industrial de defesa soviética e era um local onde havia importantes bases militares soviéticas, com destaque para a frota do Mar Negro. Segundo analistas russos, a Ucrânia era tão vital para a ex-URSS que sua decisão de romper os laços em 1991 foi um duro golpe para Moscou.
Analisando o conflito com a Crimeia sob um olhar estratégico, nota-se que, ao tomar a Crimeia, a Rússia solidificou seu controle em uma posição crítica no Mar Negro. Com uma presença militar robusta na Crimeia, a Rússia fica em condições de projetar poder em locais como o Mediterrâneo, o Oriente Médio e o norte da África, onde historicamente tem influência limitada.
Em meio a uma crise, analisar um fenômeno em curso é desafiador, mas necessário. Dito isso, é importante frisar que este artigo não possuiu a pretensão de esgotar o assunto e nem tampouco pretendeu se posicionar nessa disputa que envolve norte-americanos, russos e europeus, mas tão somente procurou dar luz sobre os fatos e os aspectos que, segundo os russos, tornam a Ucrânia importante geopoliticamente para Moscou.
De todos os elementos que foram apresentados neste artigo, chamou a atenção o posicionamento da população russa em 2014, ocasião em que a mesma apoiou as ações de Vladimir Putin junto à Ucrânia. Tal atitude indica que o mandatário russo não deverá encontrar maiores problemas para obter o apoio de sua população, em face de uma improvável e eventual investida russa na Ucrânia nos dias atuais; apoio que não deve ser obtido por Joe Biden e pelos líderes europeus, uma vez que norte-americanos e europeus não possuem os laços históricos e culturais que os russos possuem com a Ucrânia.
Por fim, acompanhando a evolução dos acontecimentos e com base no que foi escrito, visualizo que a probabilidade de ocorrer um conflito bélico é pequena, e que o mais provável é que a crise continue em seu processo de escalada e que a Rússia não deverá abrir mão de continuar exercendo o seu controle junto à Ucrânia, posicionada em seu Heartland.
Texto recebido do EBlog, de Ten Cel Anselmo de O. Rodrigues