Punição disciplinar: “tem por objetivo a preservação da disciplina e o benefício educativo do militar punido e da coletividade a que ele pertence…” (Regulamento Disciplinar do Exército)
É inegável que o nível de insatisfação entre militares da Marinha, Exército e Aeronáutica aumentou. Essa “crise” tem muitas motivações, sem que isso isente os próprios militares da responsabilidade por parte dessa degradação. Entretanto, depois de décadas de observação, fica claro que um dos grandes problemas dentro das FA está na gerência das carreiras dos militares que compõem suas fileiras. A visão equivocada de que pessoas são apenas números provocou, ao longo dos anos, um verdadeiro Êxodo, a ampliação do quadro de problemas comportamentais e também menor produtividade.
A Barca
Há muitos anos as Forças Armadas se valem de avaliações semestrais e outras ferramentas para determinar se um militar será mantido nas fileiras ou se será excluído do Serviço Ativo. Essas exclusões têm “arremessado” no mercado de trabalho homens e mulheres – concursados – que passaram até 9 anos somente na condição de militar, o que implica em dizer que estes podem não estar adaptados para a labuta no meio civil, ao menos durante um árduo período. Um dos órgãos responsáveis por isso é a complexa e quase sempre controversa Comissão de Promoção (neste caso destacarei as CPP e CPO da Marinha) que servem como o último filtro determinante para a permanência ou exclusão do militar da Força a qual está vinculado.
Está assim escrito no Regulamento de Promoções de Praças da Marinha:
Art. 19. Para promoção de Praça à graduação superior por merecimento ou antiguidade, serão exigidos, conforme o caso, os seguintes requisitos:
I – interstício;
II – comportamento, considerando o cômputo de pontos perdidos até a data de promoção;
III – aptidão média para a carreira, lançada nos assentamentos, relativa ao último semestre;
IV – habilitação profissional (aprovação em exames, estágios ou cursos);
V – tempo de embarque/serviço na tropa, conforme definido no PCPM;
VI – higidez física e mental; e
VII – avaliação das respectivas Comissões de Promoção de Praças (CPP) conforme citado no art. 40 deste Regulamento, quando aplicável.
Diz o acima citado artigo 40:
Art. 40. A DPMM e o CApCFN, respectivamente, disporão de uma CPP com a finalidade de avaliar as Praças, quanto aos aspectos de suas carreiras, de acordo com as normas específicas para funcionamento e avaliação.
Agora vejam o que está citado no Plano de Carreira de Praças da Marinha:
2.22.2 – Requisitos Básicos para Inscrição em Processo Seletivo e Matrícula
A praça deve satisfazer aos seguintes requisitos básicos, por ocasião da inscrição em processo seletivo ou da matrícula em cursos e Estágio de Habilitação a Sargento (Est-HabSG), exceto C-Exp:
a) ter sido selecionada para o curso ou estágio;
b) estar apta em inspeção de saúde;
c) ter sido aprovada no último TAF anual, imediatamente anterior ao curso ou estágio a ser realizado;
d) não estar definitivamente impedida de acesso, de acordo com o estabelecido no RPPM;
e) ter nota de Aptidão Média para a Carreira (AMC) igual ou superior a três (3);
f) ter comportamento igual ou superior a setenta (70) pontos; e
g) ter parecer favorável da CPP, para os C-Espc, C-Esp-HabSG e Est-HabSG.
Como devem ter notado, o papel da CPP é determinante para a permanência ou exclusão do Praça. Entretanto, um ponto não fica esclarecido: quais são os critérios adotados por tal Comissão?
Infrações disciplinares
Quando o militar desconhece os problemas gerados por uma simples Contravenção Disciplinar ou não dispõe da experiência necessária (ou mesmo aconselhamento) que o leve a buscar as correções de quaisquer lacunas que venha a apresentar, nos deparamos com uma situação onde o empregador (Forças Armadas) se vale da força de trabalho do servidor até o ponto de ruptura (que já está pré-estabelecido) cujo ápice será o desligamento das fileiras da instituição.
Justo ou não, essa é a realidade da maioria dos casos que analisei durante anos como Sargenteante Geral de uma das maiores Organizações Militares da Marinha (OM), a Base Naval do Rio de Janeiro. Nestes anos eu contemplei processos de desligamento justos (onde o militar era responsável por sua própria degradação profissional), mas também vi uma enorme quantidade de processos que comprovam minha tese sobre os prejuízos do desconhecimento da carreira e dos direitos não aplicados, além de uma boa dose de arbitrariedade por parte da Comissão de Promoção.
Para justificar o subtítulo, Barca é o termo usado pelos militares quando há um desligamento de pessoal massivo ou até mesmo um desembarque de vários militares para outras OM de forma inopinada.
Não existe ex-condenado
A visão da CPP e CPO é aparentemente simples: não existe ex-condenado. Mas não se trata de uma condenação em juízo; trata-se da punição mais simples que um militar pode receber. De forma sucinta, as Contravenções Disciplinares – cuja função primordial seria a de conduzir o militar de volta ao caminho correto, uma espécie de alerta – transformaram-se em verdadeiras sentenças para o militar que incidiu na contravenção e por tal foi julgado e condenado.
Pela própria definição de punição disciplinar, isso jamais poderia ocorrer. Restabelecida a disciplina e educado o militar, tudo retorna ao normal e não poder-se-ia utilizar as infrações já “quitadas” para novamente se penalizar os militares.
O uso de um histórico “desfavorável” para impedir que o Oficial ou o Praça ingressem em um determinado curso de carreira é, via de regra, equivocado e injusto, sobretudo se levarmos em conta que a punição por uma contravenção é, por si só, o “pagamento” da dívida criada pelo erro cometido. De forma análoga, não podemos punir ou segregar um condenado pela justiça após este ter cumprido sua pena, já que ele está livre e quite com a sociedade. Entretanto, mesmo contrariando o próprio regulamento, as FA se valem deste histórico de punição como fator excludente para os militares que foram punidos por suas infrações.
O Regulamento Disciplinar da Marinha (RDM) estabelece o seguinte:
Art. 17 – Por uma única contravenção não pode ser aplicada mais de uma punição.
O art. 17 do RDM é claríssimo no tocante ao uso de uma contravenção como fator punitivo em mais de uma situação. Alguns podem chamar de “interpretação”, porém é notório que a CPP e CPO estão se valendo do conjunto de contravenções para excluir o militar de um processo seletivo ou mesmo impedi-lo de inscrever-se em um concurso/curso obrigatório para o prosseguimento da carreira.
Ora, se o militar não tem autorização para se inscrever em um concurso/curso interno, indispensável ao prosseguimento da carreira, obviamente este militar estará fadado à Exclusão do Serviço Ativo (em caso de não possuir estabilidade), isto é, será dispensado da Força e ingressará na lista dos milhões de desempregados em nosso país. Quando possuidor de estabilidade (adquirida após 10 anos de serviço), a negativa quanto à autorização para realizar ou inscrever-se em um curso/concurso/processo seletivo que é imprescindível para prosseguir carreira, funciona como um bloqueio, uma forma administrativa de “travar” o militar em uma determinada Graduação/Posto.
Mas, para ser justo, é óbvio que as FA se preocupam com a qualidade de seu contingente, tal como qualquer “empresa”. Quanto mais habilitado e melhor forem o comportamento, avaliação e recomendações, certamente maiores serão as chances de que a permanência ocorra. Não é porque se trata de um órgão federal que qualquer um será aceito. Não há caridade nas FA, há uma seleção em tempo integral que deveria separar o joio do trigo.
Mas o que podemos estar presenciando há anos é o uso equivocado de uma ferramenta que, destinada a alertar e aprimorar, tem sido mais voltada a punir e prejudicar as carreiras de maneira irreversível. Sim, há exceções, mas algumas das experiências obtidas enquanto elaborava os requerimentos comprovarão que – novamente afirmo – a famigerada carta da CPP/CPO é, atualmente, uma sentença definitiva, irrevogável, perpétua, capital… sejam quais forem os argumentos dos militares por ela apontados como “indignos” de continuar na Força.
Cabe ressaltar que – de forma análoga – Aeronáutica e Exército também adotam medidas que impedem o acesso normal aos cursos de carreira, concursos internos e processos seletivos. Mas é por intermédio das Avaliações Semestrais (Aptidões para a Carreira) que Oficiais e Praças são prejudicados de forma silenciosa, seja por ter realmente problemas reais na carreira, seja por despreparo do Avaliador ou, em grande parte dos casos, ausência de simpatia por parte do Avaliador para com o Avaliado.
Os dois lados da moeda chamada Avaliação Semestral.
A cada seis meses os militares são avaliados quanto aos seus desempenhos no âmbito moral, profissional e no que diz respeito à função exercida (isso na MB). Claro que aspectos diários também são acrescidos neste “questionário”, inclusive os problemas apresentados ao longo do semestre. Em suma, nada passa incólume, seja um apontamento positivo ou negativo.
E como é feita essa observação?
As avaliações necessitam de dois elementos básicos: Avaliador e Avaliado. Acrescente-se a esse binômio os elementos que serão julgados/analisados e, mais ainda, um dos pontos fracos de qualquer avaliação seja no meio militar ou civil: a qualidade do relacionamento entre as duas extremidades dessa equação. Entendamos que é quase impossível dissociar a simpatia ou a antipatia de um relacionamento onde a hierarquia se faça presente. Um “chefe” tende a ver seus subordinados de formas diferentes, mas isso ganha amplitude quando o momento do subordinado não é bom ou quando este tem falhas comportamentais.
O acima chamado “momento” do avaliado é algo incontrolável por parte deste. Todos têm momentos bons e ruins, mas algumas pessoas não têm controle sobre suas emoções diante das fases negativas. Seja por inexperiência, rebeldia ou mesmo por causa de uma má educação (aquela mesma que é resultante do convívio familiar, religioso e escolar), é difícil fazer uma análise positiva quando há momentos negativos. O ser humano, em sua maioria, tem a tendência de armazenar os fatos ruins; assim, dificilmente o acerto será lembrado com mais intensidade do que a falha por parte do avaliador.
Agora há um fenômeno que trouxe ainda mais problemas para a já deficitária metodologia de avaliação: a delegação da responsabilidade para avaliar dada aos militares temporários, os chamados RM2. E, sei que alguns perguntarão, qual o problema de um temporário (aquele cujo contrato é anualmente renovado ou não.? Simples, os avaliadores, quando de carreira, geralmente possuem experiência na função, já foram auxiliares de outros Oficiais e conviveram com os subordinados ao ponto de compreender as nuances e dificuldades do Praça. Entretanto. Já o Oficial temporário não tem essa experiência e, para piorar, é facilmente contaminado pela ideologia de que o bom Oficial é aquele cujo rigor se destaca entre os demais. Acrescentemos a isso o fato de que alguns aparentemente querem mostrar “serviço” para ter a renovação de seu contrato aprovada.
E quais são os problemas oriundos de avaliações cujas bases são o desconhecimento do que se faz, a falta de empatia pela carreira do avaliado, a inexperiência do avaliador e até mesmo o descaso quanto aos resultados vindouros gerados por esses apontamentos? Simplesmente teremos os motivos para que as Comissões excluam o militar de um concurso interno, impeça-o de compor um quadro de promoção e, em última instância, o desligamento do militar da Força a que serve.
O militar tem direito à defesa?
Obviamente que todo processo cuja premissa é a carreira de um militar envolve as “apurações” feitas pelo órgão responsável pelo apontamento, mas também cabe o Recurso, documento no qual o indivíduo apresentará as justificativas e esclarecimentos para impedir o prosseguimento de um processo voltado a prejudicá-lo direta ou indiretamente.
Isso é a parte bonita da história…
Um ponto apontado há alguns anos por militares é a diminuição da vontade em compreender os fatos lançados nos requerimentos dos militares que as Comissões classificaram como inaptos para concurso, promoção ou curso de carreira.
Exemplificando…
Um dos militares para o qual preparamos um requerimento junto à Comissão de Promoção teve como fatores impeditivos à Inscrição para o Concurso a Sargento a famosa “Média aritmética da turma”, conjunto de contravenções e declínio em suas últimas avaliações. Como forma de esclarecimento. Afirmei que houve o declínio nas avaliações por causa de problemas de saúde que atingiram a esposa do militar que, infelizmente, não possuía outra pessoa para prestar auxílio por ter pouquíssimo tempo morando no Rio de Janeiro.
Ora, o auxílio prestado à esposa gerou um atraso em seu regresso ao quartel que, consequentemente, foi considerado uma Contravenção Disciplinar mesmo com o comprovante de tê-la levado ao atendimento médico ou algo similar. O que se seguiu foi a punição por tal “contravenção” e, como de costume nas FFAA, um militar punido não pode permanecer com seu conceito alto, faz-se necessário abaixar a avaliação dele (segundo a mentalidade da maioria dos Avaliadores).
Seguindo, questionei a citada “Média aritmética”. Como saber que essa média está aplicada corretamente se tal informação não está ao alcance do militar; ela é quase um segredo de justiça. Mas não paramos aí. Não esqueçamos o “conjunto de contravenções”, cujo alicerce são as punições sofridas ao longo da carreira e, ainda pior, usadas novamente como forma de justificar o prejuízo que o militar sofrerá. Conforme citado, usar algo do passado para prejudicar permanentemente um militar concursado é algo contrário até mesmo ao que preceituam os regulamentos.
Argumentar é algo imprescindível para o sucesso de um requerimento cuja finalidade é reverter um quadro desfavorável, porém o nível de rigor das Comissões de Promoção desestimula a argumentação. Obviamente há casos onde o militar incidiu em atos considerados ofensivos à instituição, contrários aos preceitos éticos e morais, entre outros.
É incompreensível tanto afinco em desligar uma parcela de militares que – via de regra – não receberam as instruções e alertas suficientes para que corrigissem a tempo suas falhas. Contudo é bom lembrar que alguns sequer cometeram contravenções ou apresentaram declínio em suas avaliações, mas jamais foram agraciados com a simpatia de seus Encarregados que, por tal, os julgaram como Muito Bons.
E qual o problema em ser considerado Muito Bom? Desde quando isso é ruim?
Bem, caro leitor, esse é um problema simples que se esconde por trás de duas palavras que classificam aquele a quem elas se referem como um indivíduo acima da média. Claro que isso é facilmente perceptível quando o militar avaliado como Muito Bom (nota entre 8 e 9) perde até mesmo dois pontos em relação ao avaliado como Excelente (nota entre 9,1 e 10). E não precisa receber outra nota baixa, pois é dificílimo recuperar os pontos defasados, fato que o incluirá na famigerada “nota abaixo da média aritmética da turma”.
Na maioria das alegações das Comissões é possível se valer de argumentos válidos para refutá-las. Entretanto, o que se vê é a exclusão sumária de militares que deveriam receber a oportunidade para provar que uma fase ruim não pode decretar o fim de uma carreira, mas estes têm seus predicados desconsiderados por conta de uma curta fase cujo rendimento foi abaixo do esperado.
Também é importantíssimo destacar que algumas Organizações Militares são pressionadas a ter um percentual de avaliações, isto é, 20% de militares excelentes, 15% de militares muito bons, etc. Esse posicionamento levará o avaliador a ter que alterar o conceito de militares para cumprir a “cota” que está estabelecida de forma subliminar. Por se tratar de algo que existe apenas nos bastidores, dificilmente um militar poderá comprovar que foi prejudicado por tal doutrina.
Ainda sobre a avaliação, os militares avaliadores podem até classificar um militar como “excelente”, mas o Chefe de Departamento, o Imediato ou o Comandante podem determinar a mudança (geralmente para diminuir a nota) pelos mais diversos motivos, incluindo o acima mencionado. Esse tipo de ação é um fator de desmotivação para a tropa e serve para destacar o nível de autoritarismo presente nas FA e também nas polícias militares (em menor grau).
Hoje as avaliações semestrais se tornaram uma ferramenta de castigo para Oficiais e Praças. Não é preciso alertar o militar sobre a avaliação, pois atualmente essa prática caiu em desuso, o que leva o avaliado a só descobrir sua nota quando ela já está no sistema. Mesmo com a insatisfação do avaliado, a verdade é que somente o Comandante da OM poderá pedir (e justificar) a alteração de uma Aptidão para a Carreira… e isso é extremamente raro, sobretudo por expor o comandante frente ao Diretor de Pessoal ou ao Comandante do Pessoal (no caso dos Fuzileiros Navais).
Nota final
Seria possível prolongar essa matéria por muitas outras áreas que merecem abordagem, porém ela não é um ataque às Comissões de Promoção. Ao contrário, esta longa matéria é voltada a discussão de falhas que, aparentemente, não foram apresentadas às lideranças dessas comissões. O texto discute questões legais e de amplo interesse público, como os regulamentos disciplinares.
Ao longo do tempo coletou-se opiniões e sugestões, transcritas abaixo
Quando um militar tiver um período negativo de sua carreira apontado como desabonador, que este militar possa ter os períodos positivos também computados a seu favor.
Quando houver punição, que esta não seja usada como fator para a exclusão de um processo de avanço na carreira, principalmente se levarmos em conta que ser punido duas vezes por um mesmo delito é, no mínimo, inconstitucional. Alerta-se, ainda, à necessidade de maiores esclarecimentos aos que estão no início de carreira; muitos acreditam que uma “repreensão” ou um “serviço extra” não tem potencial para prejudicá-los no futuro, mas a realidade se mostra muito diferente.
O receio de apontar faltas cometida para não parecer um “perseguidor” tem contribuído para criar lideranças frágeis, incapazes de conduzir os inexperientes. Como consequência, estes são sumariamente excluídos das fileiras.
Por último, que os critérios das Comissões de Promoção seja claros e arredios às interpretações dúbias. Muitos militares e seus advogados encontram dificuldades para descobrir quais são realmente os pontos negativos que levaram a Comissão a decretar o início do processo de desligamento de quem já está próximo à estabilidade em sua Corporação.
Que as comissões não cometam o deslize de excluir um indivíduo de um processo seletivo (como o C-Asemso) para no dia seguinte premiá-lo com uma medalha de trinta anos de bons serviços… isso é contraditório.
Jogar um militar concursado no mercado de trabalho de forma abrupta pode ser o estopim de uma crise de segurança, pois não é improvável que esse indivíduo ingresse na lista gigantesca dos desempregados e, por absoluto desespero, tome atitudes que o farão se arrepender no futuro.
Revista Sociedade Militar
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