“Não havia como impor o “golpe”, era preciso consentimento…”
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A Politização das Forças Armadas começa a dar seus frutos amargos
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Para alguns é cada vez mais plausível a tese que diz que a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018 para presidente do Brasil se trata de um resultado de uma operação orquestrada e principalmente lastreada no “capital social” conquistado pelas Forças Armadas ao longo dos trinta anos após a redemocratização.
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Os mentores da militarização da política ultrapassam em muito os limites estreitos da mentalidade tacanha dos generais que encabeçaram a ação, não sendo estes os exclusivos responsáveis. O alto empresariado, a nata do funcionalismo público dos três poderes e setores da grande imprensa, todos se uniram em prol do atraso sociopolítico que representou o último governo militarizado. Mas, o que nos importa aqui não são os atores, e sim a plataforma sobre a qual agiram, a qual, hoje, principia a voltar-se sobre o elo mais vulnerável do conjunto, as próprias Forças Armadas.
Como estávamos em 2018, e não em 1963, obviamente uma intervenção político – militar dispensaria a força bruta e seus Urutus. Afinal, apesar da mentalidade militar ser imutável, a sociedade evoluiu e se sofisticou. Não havia como impor o “golpe”, era preciso consentimento. E não seria possível consentimento que nascesse de questionamento direto. As Forças não iriam perguntar à sociedade se ela gostaria muito de ser “golpeada”. Seria óbvia a resposta. Era preciso o consentimento por via oblíqua. Era preciso que houvesse um “clamor popular”, mesmo que parcial. E esse clamor foi plotado e potencializado na infosfera do mundo virtual.
Em 2019, ao passar o comando do Centro de Comunicação do EB para o general Richard Nunes, Otávio do Rêgo Barros, general que se tornou porta-voz de Bolsonaro (e hoje é colunista na grande imprensa), em discurso de despedida, fez uma revelação notável sobre consentimento. Ele disse
O ingresso do Exército Brasileiro nas mídias sociais também foi lembrado: “mergulhar de cabeça no ‘submundo’ das mídias sociais – Facebook, Instagram, Twitter, WhatsApp, Portal Responsivo, Eblog etc – e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil exigiu sangue frio na interlocução sem rosto, típica da internet, suor à frente do teclado e lágrimas de emoções pela conquista do cimo”.
O que seria o “submundo das mídias”? Em 2018 isso não estava exatamente definido, mas hoje, depois dos episódios grotescos do 8 de janeiro, é de uma clareza meridiana. A superfície do fenômeno Bolsonaro (que, absolutamente não se restringe ao indivíduo que tem esse nome) baseou-se na tríade fascista “Deus, Pátria e Família”. Entre eles o que tinha lastro total no militarismo era a Pátria. Conectar “soldado” a “pátria” é algo intuitivo para o brasileiro – não por acaso os bolsonaristas se autodenominavam “patriotas” – e a conexão se tornou sinonímia incontestável. A imagem do militar tornou-se a imagem do patriota por excelência. Adicionando essa associação histórica ao “mergulhar de cabeça” do general que foi o chefe mais longevo do Centro de Comunicação do Exército fica fácil entender o poder de “influência no mundo digital” por parte da Força terrestre.
No artigo “O mundo PSIC e a Ética Militar” publicado em veículo institucional do Exército Brasileiro, o conhecido EBlog, o general Richard Nunes, substituto de Rego Barros no CComEB, defende que um “inconformismo com a tradicional postura legalista e de neutralidade do Exército” vem ocasionando “ataques a reputações típicos de regimes totalitários” e “insultos a camaradas de longa data”. O objetivo dessas práticas, de acordo com o oficial do Alto Comando, seria “tentar atingir a coesão da Força, em flagrante traição ao sacrossanto respeito à hierarquia e à disciplina”. O texto é um típico apagar de digitais acoplado a uma inversão de culpa.
O general discorre sobre as características marcantes do universo tecnológico moderno, contrastando-as com a ética militar.
“É exatamente na dimensão informacional que temos assistido a condutas em desacordo com a ética militar por parte daqueles que, por indignação, ingenuidade, desconhecimento e, até mesmo, má-fé, têm contribuído para disseminar a desinformação, a relativização de valores e, consequentemente, a desunião que enfraquece o espírito de corpo”.
Falando de boataria, “bizu falso” ou como é conhecido atualmente, “fake news”, é oportuno remover a poeira da estante e relembrar que em 1995, o coronel do Exército Carlos Alberto Lima Menna Barreto publicou o livro chamado “A farsa Ianomâmi”, em que alertava para o suposto perigo do separatismo e chegava a questionar a existência dos Yanomami como povo. Será que Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão leram esse manual etnocida? É bem provável…
O general continua:
“a superficialidade é outro aspecto dissonante do comportamento ético. Quando um militar extrapola a esfera de suas atribuições, e passa a opinar publicamente sobre o que não é de sua competência, contribui para o descrédito na cadeia de comando e no cumprimento da missão.”
Aqui não é preciso recuar tanto no tempo. Há poucos anos tivemos a má sorte de ter um general que não sabia o que era nem como funcionava o Sistema Único de Saúde ocupando o cargo de Ministro da Saúde em plena pandemia de Covid-19. Onde estava a “cadeia de comando” que não só autorizou essa empreitada vergonhosa como ainda calou-se diante desse “aspecto dissonante do comportamento ético”?
Sobre “os preceitos da ética militar”, o general Richard afirma que estes indicam “que não se pode prejudicar a reputação e a credibilidade do Exército, conquistadas em séculos de História, por conta do oportunismo de uns e do jogo de interesses de outros”. Um item interessante do Estatuto dos Militares, Lei nº 6.880/1980, em seu capítulo “Da ética” foi e ainda é desrespeitado por muitos militares que enveredam pela política. O militar brasileiro não tem, como, por exemplo, o militar norte-americano, uma “quarentena”. Por lá, só depois de sete anos na reserva eles podem se candidatar a cargos eletivos. Por aqui, o único dispositivo legal que serviria de freio à promiscuidade entre a caserna e a “pólis”, que vimos escancarada a partir de 2018, foi este singelo mandamento: “abster-se, na inatividade, do uso das designações hierárquicas em atividades político-partidárias”. Do cabo ao general, quase ninguém respeita. Por quê? Simplesmente porque a plataforma política desses candidatos é politicamente inconsistente e se alicerça unicamente na imagem das Forças Armadas. É o único capital político de que dispõem. Oportunismo de uns e jogo de interesses de todos.
Muitos exemplos podem ser dados. Muitos paralelos podem ser traçados entre o “inconformismo com a [suposta] tradicional postura legalista e de neutralidade do Exército” e as ações (e omissões) ambíguas de seus generais ao longo dos últimos anos.
Mas, nada é mais sintomático de que o “mergulho no submundo da internet” esteja drenando rapidamente o capital social dos militares do que o fato de que a massa radicalizada, que foi mesmerizada com fardas camufladas, com o saudosismo da ditadura, alimentada por meses com o delírio intervencionista sejam os mesmos que com virulência crescente atacam nas plataformas virtuais as Forças Armadas a ponto de o Exército ter fechado os campos de comentários em suas redes sociais. “O órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil” hoje é um pária virtual incapaz de dialogar com a população. No mundo de hoje, qual será o custo disso?
JB Reis – https://linktr.ee/veteranistao
Revista Sociedade Militar – Artigo de Opinião
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