Uma obra-prima do cinema de guerra, Nascido para matar (Full Metal Jack) figura entre os melhores filmes do gênero. Sua grandiosidade se dá por mostrar um lado pouco conhecido do militarismo, em especial da famigerada Guerra do Vietnã e dos devastadores efeitos desta nos combatentes das Forças Armadas estadunidenses, em especial os Fuzileiros Navais.
A obra mostra a trajetória de um grupo de jovens que são recrutados para compor o Corpo de Fuzileiros Navais. Entretanto, nada é tão simples. Para se tornar um Fuzileiro, estes jovens terão que deixar o marasmo da vida civil e ingressar de corpo e alma na vida militar. Não há espaço para fracos, algo comprovado ao decorrer da projeção.
Ato I
O primeiro ato mostra a transformação de garotos em homens. É impressionante a forma como Stanley Kubrick conduz as atuações, tal como também dá muito realismo ao que se passa durante o período de recrutamento.
As primeiras impressões são inesquecíveis. Os rapazes são encaminhados para cortar o cabelo. Caso você nunca tenha servido às Forças Armadas, certamente não terá uma clara noção dos reais motivos para que esses jovens tenham seus cabelos “tosados”.
Primeiramente é preciso ater-se ao fato de que esse corte serve para dois propósitos: identificar imediatamente um recruta, coloca-los em condições de igualdade e, provavelmente, para garantir a higiene da tropa.
O sargento.
Em qualquer Organização Militar em que exista um campo de treinos, certamente também encontraremos a presença de um superior hierárquico que fará o papel de doutrinador dos alunos e/ou recrutas. A garantia de um bom treinamento e da migração da condição de “paisano” para a de militar é totalmente vinculada aos homens que criarão em jovens civis as aptidões para servir à Pátria.
Em “Nascido para Matar” nós temos um desses elementos indispensáveis para que nada saia errado: o Sargento Hartman. Hartman é um homem bruto no trato pessoal, incapaz de se emocionar e atento a tudo. Errar diante dele é um pedido de castigo.
Apesar da brutalidade e das palavras que impressionam pela rispidez e o teor ofensivo, Hartman só quer o melhor para seus recrutas e seu país. Ele é o típico militar que abandona a própria vida para deixar seu ápice para o país que serve.
Tudo posso…
O front é uma área onde, infelizmente, as regras não se aplicam. A História já nos mostrou diversas vezes que a guerra é um palco onde cada cena é escrita a sangue. Isso não foi diferente no Vietnã e, indubitavelmente, Kubrick fez questão de escancarar o pior do conflito, principalmente por parte dos norte-americanos.
Dessa forma, não se assustem ao contemplar soldados armados contra camponeses, incluindo entre estes, homens, mulheres e crianças.
Outro ponto absurdo, porém também comum em zonas de guerra é a gradual perda da noção do valor de uma vida humana, a frieza das ações e a impiedade contra o inimigo. Matar, em suma, torna-se algo divertido, um passatempo contra o tédio das horas de espera pelo confronto.
Decadência moral.
Os citados jovens – do início desta análise – somem por completo com o decorrer do filme. A destruição de qualquer indício de moralidade é visível. Em bando, os soldados tendem a se comportar de forma brutal, desprezam a vida do inimigo e assumem a postura de caçadores. Ainda são os mesmo jovens – ao menos em idade – que decidem agir como hienas que atacam em bando.
Em meio ao conflito, durante os poucos momentos de relativa calma, imperam o uso de drogas (lícitas e ilícitas), o desejo de voltar para casa, a prostituição e atos que jamais seriam praticados em condições normais, em tempos de paz.
A guerra – como sempre – vence o mais arraigado conceito moral e põe no seu lugar a frieza dos que voltaram do inferno.
Ambientação.
Em todos os atos do filme é extremamente simples para o espectador a imersão na obra. Isso se dá por causa das ótimas interpretações, as locações, o uso de equipamento militar e – indubitavelmente – a reconstituição fiel de um ambiente militar.
Até a metade do filme o espectador terá uma reconstituição fiel, cruel e interessante sobre o processo de transformação de um civil em um soldado. Após isso, o espectador encontrará alguns desses soldados já em combate, todos extremamente menos suscetíveis às emoções e mais propensos a agir por impulso e raiva.
A locação para ambientar o Vietnã é muito próxima daquilo que as fotos e filmagens de época mostraram. O excesso de poder dos americanos também mostra que nem tudo é como os políticos afirmam, já que são incontáveis os relatos de excessos por parte das Forças Armadas dos EUA.
Ato II.
Serei extremamente justo com o filme e todos os envolvidos.
Há uma clara crítica à guerra que colocou – negativamente – os EUA no cenário mundial. Afinal, o resultado moral da guerra foi uma humilhante retirada das tropas estadunidenses e noticiada em todos os principais jornais do planeta.
Full Metal Jacket tem, dentro da minha visão, dois atos (normalmente os filmes são divididos em três atos). O primeiro, analisado no início da crítica, é o auge emocional da obra, pois o diretor nos conduz a adquirir empatia pelas personagens. Seu final, acreditem, é extremamente impactante.
Já o segundo ato é uma crua visão do front. Não há espaço para amenidades, algo que podemos contemplar em cada um dos minutos desse segundo ato.
Não há uma “jornada do herói” em Nascido para Matar. O que temos, ao contrário, é uma rota de colisão com o caos, já que a intenção do filme é destacar os piores pontos de um confronto armado entre nações.
Nota final.
Ao espectador que tem um pouco mais de sensibilidade, que se ofende à toa ou não suporta pressão, deixo um recado: esse filme não é para você. Nascido para Matar é uma obra voltada para um público adulto, cuja temática destaca, entre outras coisas, a dura realidade militar, a tragédia provocada pela guerra e a manipulação dos poderosos que, sem qualquer remorso, encaminham seus jovens para combater as guerras que estes mesmos poderosos criaram.
O ponto mais positivo deste filme é apresentar – em sua íntegra – os traumas e males dos combates. Ao final das contas quando confrontados com a real violência e a morte, os soldados percebem que todo o sofrimento do período de recrutamento é, em suma, apenas amenidade quando comparado à realidade do campo de batalha.
P.S.: por causa da juventude à época, muitos dos atores são difíceis de reconhecer, mas vale a pena buscar quem são e quais papéis fizeram ao longo da vida.