As recentes pautas do Superior Tribunal Militar, responsável por julgar delitos cometidos por militares das Forças Armadas sob o Código Penal Militar, lançam luz sobre as principais transgressões ocorridas nos quartéis das Forças Armadas Brasileiras nos últimos meses. Uma análise detalhada dessas pautas revela uma tendência interessante ao mesmo tempo que preocupante: uma proporção significativa dos crimes está vinculada a questões financeiras.
Das infrações listadas para julgamento nas 10 últimas pautas divulgadas pela Justiça Militar da União, crimes como estelionato, peculato, peculato-furto, furto qualificado e os relacionados à Lei de Licitações somam 30 casos. Isso indica que, de todos os delitos cometidos por militares, aproximadamente 30% têm motivações financeiras.
Crimes como desacato, deserção e violência contra inferior, embora comuns, são em número bem menor do que os crimes onde os acusados tem o objetivo de obter alguma vantagem financeira.
Um militar na graduação de subtenente, que optou por não se identificar, ouvido por telefone, revelou à Revista Sociedade Militar que certas práticas irregulares acabaram se tornando comuns para solucionar problemas com rapidez dentro das instituições militares, o que para ele contribui – em sua visão – com esse alto índice de ilícitos.
Segundo explica, uma dessas práticas é conhecida como “química”. O procedimento acontece quando uma unidade militar possui recursos destinados a uma atividade específica, como um serviço, mas se depara com a necessidade urgente de adquirir um material. A urgência pode vir da visita iminente de um chefe militar, de uma operação importante etc. Para não desapontar a liderança ou falhar na missão – muitas vezes o superior, comandante, chefe… grita algo como “se vira, dê o seu jeito” – o subordinado acaba buscando soluções alternativas. Ele se aproxima de um fornecedor, geralmente alguma empresa mais recorrente em contratos e solicita a emissão de uma nota fiscal fictícia, como se um serviço específico tivesse sido prestado. Posteriormente, alguém dentro da unidade confirma o recebimento do “serviço”. Após deduzir os impostos e até cobrar um “ágio”, o fornecedor devolve o valor em dinheiro vivo à unidade, permitindo a compra do material desejado e – infelizmente – o mau uso do dinheiro, que dessa vez é em espécie e fica livre para ser utilizado onde o “gestor” bem entender.
A fonte explica que a recorrência desse tipo de procedimento pode estimular a cumplicidade entre fornecedores e militares, divisão do ágio cobrado, sentimento de que “o chefe faz eu também faço” etc.
Ele conta: “A verba de material… Tem uma festa pra fazer… o cara diz que entregou tal material e entrega outro… areia e cimento, por exemplo, não tem como controlar… o cara entrega refrigerante pra festa do general e o sargento assina que recebeu um caminhão de areia… Tem ainda a química preventiva, compra tudo com o cara e quando precisar de algo emergencial ele faz… ele coloca uns centavos a mais em tudo… o sargento que faz o contato com o logista acaba indo na onda, o cara precisa de peça de liquidificador da casa dele e pega também lá na loja do comerciante “amigo”.”
Um artigo publicado no Jornal Zero Hora define essa prática
“Em dezembro de 2019 foi deflagrada a Operação Química, com 40 agentes da Polícia Federal e militares do Exército cumprindo mandados de busca e apreensão em oito endereços de Uruguaiana e Alegrete. O nome da operação faz referência ao jargão usado nos quartéis – “química” – quando um militar aceita uma mercadoria diferente da contratada. Segundo Arpini, muitas vezes o empresário pagava alguma despesa emergencial que surgia nos quartéis, como o conserto de uma câmara fria, mas emitia nota fiscal como se tivesse fornecido algum mantimento previsto em contrato. Em conluio com os militares, cobrava de 30% a 35% de ágio. Em alguns casos, as licitações já previam compra superior à demanda para permitir essa elasticidade no manejo das verbas… Com o acordo de colaboração premiada, os dois delatores confessaram formalmente os crimes e aceitaram devolver à União o prejuízo, calculado em R$ 5.225.066,16. Pelos termos do acordo… ”
ESTELIONATO
Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento:
PECULATO
Apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo ou comissão, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio:
PECULATO-FURTO
… embora não tendo a posse ou detenção do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou contribui para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de militar ou de funcionário.
FURTO QUALIFICADO
O crime de furto ocorre quando alguém subtrai, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. No entanto, o furto qualificado tem circunstâncias que agravam a pena, como quando o crime é cometido durante a noite, mediante destruição ou rompimento de obstáculo, com emprego de chave falsa, mediante concurso de duas ou mais pessoas, entre outras situações que tornam o crime mais grave.
CRIMES DA LEI DE LICITAÇÕES
A Lei de Licitações estabelece normas para licitações e contratos da Administração Pública. Os crimes relacionados a essa lei envolvem condutas ilícitas praticadas para fraudar licitações, frustrar ou fraudar o caráter competitivo de procedimento licitatório, afastar ou procurar afastar licitante por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem, entre outros. As penalidades para tais crimes vão desde multas até prisão, dependendo da gravidade da infração.Parte superior do formulário
Listagem dos casos mencionados nas 10 últimas pautas de julgamento do Superior Tribunal Militar
Tipo de Caso | Quantidade |
Estelionato | 14 |
Peculato-furto | 2 |
Furto qualificado | 7 |
Importunação Sexual | 4 |
Uso de documento pessoal alheio | 1 |
Uso de documento falso | 7 |
Ameaça | 2 |
Homicidio qualificado | 1 |
Ingresso clandestino | 1 |
Crimes da Lei de licitações | 3 |
Deserção | 5 |
Lesão grave | 1 |
Furto | 3 |
Peculato | 4 |
Homicídio | 3 |
Apropriação indébita | 1 |
Violação do dever funcional com o fim de lucro | 3 |
Dormir em serviço | 2 |
Apropriação de coisa havida acidentalmente | 1 |
Denunciação caluniosa | 1 |
Corrupção passiva | 4 |
Abandono de posto | 1 |
Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar | 9 |
Calúnia | 1 |
Injúria | 2 |
Falsidade ideológica | 1 |
Violência contra inferior | 2 |
Concussão | 2 |
Moeda Falsa / Assimilados | 1 |
Crimes do Sistema Nacional de Armas | 1 |
Desacato a superior | 1 |
Licitações | 1 |
Homicídio privilegiado | 1 |
Robson Augusto – Revista Sociedade Militar