Nova Geopolítica do Crime Organizado na Região Andina
Em poucos anos, a estrutura interna e as alianças entre as facções latino-americanas mudaram muito, resultando em nova geografia do crime organizado. Hoje o que se nota é uma crescente malha de gangues, pulverizadas na maioria dos países, que operam sindicalizadas por grandes cartéis latino-americanos e, até mesmo, europeus. Esse novo compasso se avalia, sobretudo, na região andina, onde antes não havia muita sofisticação na organização de suas bandas criminales.
Por volta de 2015, as facções narcotraficantes já integravam núcleos bem assentados tanto no Brasil, principal corredor da rota atlântica, em direção à Europa, à Ásia e entrepostos africanos, quanto no México, principal via de entrada no mercado estadunidense. Em comparação, os núcleos de países produtores mantiveram-se em atraso.
Com as plantações e primeiras operações de venda sob o controle de clãs familiares, não se desenvolveram facções robustas no Peru e na Bolívia. Na Colômbia e na Venezuela, apesar de ser significativa a presença de guerrilhas, os grupos do narcotráfico permaneceram por muitos anos pulverizados e instáveis, mesmo com o histórico de cartelização na Colômbia. Ainda mais drástico, na costa pacífica, não se desenvolveu nenhum grupo de expressão nacional no Chile e Equador. Destaque-se apenas no Paraguai, a banda criminal paraguaia Clã Rotela.
Em comparação, somente no Brasil, desde os anos 2000 se estabeleceram cerca de 30 grupos estáveis, polarizados entre duas bandas de expressão nacional, o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho.
Então, sem uniformidade, nem coesão na ocupação dessa malha geográfica, a região andina (ainda que a ponta de lança da rede global do narcotráfico) esteve aquém do Brasil e da América Central no jogo esquemático de grandes facções. Em vez disso, suas forças irregulares tornaram a floresta amazônica um polo descontínuo de dissidências e grupos pulverizados, envolvidos com o plantio e o tráfico de entorpecentes, sequestros e extorsões em seus domínios territoriais, além de atividades terroristas ocasionais contra as forças de Estado.
Mas, em anos recentes, essa geografia mudou em ritmo acelerado. A principal diferença está nas forças internas situadas no próprio núcleo andino, que agora contam com novas facções, algumas muito robustas, incrementadas com inovações nas suas atividades e no formato de suas alianças.
A consolidação dessa nova fase foi facilitada por três fatores: em primeiro lugar, o incremento da presença de grupos externos, tanto a leste, na zona de pressão transfronteiriça com o Brasil, quanto à norte, com maior influência de grupos centro-americanos. Em segundo lugar, se deve à ancoragem do tráfico internacional no Pacífico Sul, utilizando portos no Equador e no Chile (até então de pouca relevância no tráfico internacional); pelas águas do Equador, os entorpecentes são despachados da Colômbia para o México, bem como pelos portos chilenos e, depois, caribenhos, tanto para a América, quanto para a Europa.
E em terceiro, vale mencionar, a crise social venezuelana, convertida em uma crise de segurança e de emigração, que oportunizou o reordenamento de seus grupos criminosos e sua distensão através das linhas de fronteira. Parte deles, tomaram os centros urbanos (e o controle de portos e passagens aéreas cruciais no translado de entorpecentes colombianos, peruanos, etc.) e outros se concentraram no arco mineiro do Orinoco (área de mata de garimpo ilegal, controlada majoritariamente por bandas venezuelanas, mas também, com a presença de criminosos brasileiros e colombianos, etc.), e por fim, um integrante principal, também ativo nos distritos de seu país, o autodenominado Tren de Áragua, organização criada desde 2013, que aproveitou o ensejo para se perfilar em outros países por meio de caravanas ilegais de migração.
A extorsão e a exploração sexual de mulheres, a maioria venezuelanas, tornou-se a tônica desse grupo, em núcleos espalhados principalmente na Colômbia, no Chile, no Peru, no Equador e na Bolívia. Mas também atuam hoje no tráfico de entorpecentes, em sequestros, roubos e extorsões de comerciantes.
O Tren de Áragua encarna um novo protótipo de célula. Combina uma ascensão abrupta, escalonada a nível internacional, financiada por uma atividade principal que não se refere, exclusivamente, ao tráfico de drogas, ainda que, uma vez fixados, comprometam-se também com essa dinâmica.
A ausência de uma área pivot para uma organização com tantos braços, condiciona sua divisão em núcleos enxutos e descentralizados; possivelmente, mais de um em uma mesma cidade, o que faz deles, em certa medida, mais vulneráveis às particularidades dos contextos locais e à possibilidade de desmobilização sumária, parcial ou total.
Já a Colômbia, um importante centro de atividade do Tren de Aragua, é afetado tanto pelas pressões advindas da contiguidade com o instável Estado venezuelano, como pelas pressões internas, arcando com grande número de grupos transnacionais próximos à fronteira venezuelana e ao longo da linha dos Andes (Equador, Peru e Chile). Entre as dissidências das Farc, o ELN e incontáveis grupos que operam no microtráfico, consta em seu quadro o autodenominado “AutodenfensasGaitanistas de Colômbia” – AGC, mais conhecido como Clandel Golfo, organização que se destaca por seus vários tentáculos na região.
Embora o grupo ainda resgate de suas origens a representação de um viés ideológico de direita, se trata, na verdade, de um organismo sem objetivos político-institucionais, que por sua estrutura transnacional, diversificada e descentralizada, mais se assemelha ao Tren de Arágua.
À efeito dessa transnacionalização do crime organizado, a vida dos criminosos locais, em regiões antes pacatas, como o Chile e o Equador, teve de se se adaptar às incursões de novas forças em seus territórios. Associaram-se a novas fórmulas para o fornecimento das drogas e passaram, em certa medida, a se definir territorialmente como bases de apoio das grandes organizações.
Nesse ambiente de crescente internacionalização, pulverização e diversificação das fontes de financiamento, se vê grupos com menos de dez membros operar no tráfico internacional e até mesmo financiar e/ou estruturar células em países vizinhos. A maioria dos grupos chilenos que repercutem nas páginas policiais, como Los Naros, La Familia, La Jotta são articulados e liderados por colombianos, por exemplo.
Já no Equador, os grupos destacados recentemente, os rivais Los Choneros e Los Lobos, têm contatos com seus pares colombianos e mexicanos; presumidamente, a Frente Oliver Sinisterra (CO) e o Cartel de Sinaloa (MEX) com os primeiros e o Comando de la Frontera (CO) e o Cartel Jalisco Nueva Generación – CJNG – (MEX) com os últimos. Na retaguarda dessas organizações estão grupos de menor calibre e que se mantem sindicalizados a grupos mais fortes e, por conseguinte, aos parceiros internacionais. Ao lado de Los Lobos, por exemplo, estão Los Lagartos, Los Tiguerones e Los Chone Killers, sendo que os dois últimos já foram aliados de Los Choneros. Já sob o guarda-chuva de Los Choneros, destacam-se as bandas Los Fatales e Los Aguillas. Centenas de gangues urbanas como essas operam em toda a América Latina. Nos Andes, apenas o Peru, a Bolívia e o Paraguai ainda estão aquém nessa modalidade.
Mas além disso, também é preciso considerar o crescente peso de grupos paramilitares nessa dinâmica, sobretudo, no que se considera a tendência à hibridização das células tipicamente “do narcotráfico”.
Na região andina, em especial, há de se reconhecer a herança legada pelos movimentos de insurgência à tecitura política regional e à composição de forças irregulares, representadas até hoje pelo Exército de Liberación Nacional – ELN – (CO), pelas dissidências das Farc (CO), pelo Ejércitodel Pueblo Paraguayo – EPP – (PY), e a Agrupación Campesina Armada – ACA – (PY), entre outros, ainda que a sua mobilização permaneça à sombra da intensa confluência de forças do narcotráfico.
Mas além das guerrilhas, surgem hoje na região grupos paramilitares de segurança privada ou de justiceiros que, discretamente, tornam-se milicias, integradas à corrente de forças irregulares. São organizações impulsionadas pela oposição às facções narcotraficantes e pela polarização ideológica regional.
Somam à nova dinâmica a) uma centralidade nos redutos territoriais, mantidos com a disciplina e a técnica militar e b) a exploração de outras fontes, que não o tráfico: nos centros urbanos, através da cobrança de taxas de comerciantes e de moradores para que tenham acesso a serviços básicos como água, luz e pagamentos por sua própria proteção, e nas áreas de mata e no campo, a cobrança de pedágios, contrabando, mineração ilegal e etc.
A tendência nos próximos anos é que se torne cada vez menos clara uma distinção entre os diversos tipos de grupos, tanto em suas práticas, quanto, sobretudo, na composição interna, com a mesclagem de traficantes, “no sentido puro”, com alguns desses membros que possuem alguma instrução técnica de armamentos e operações táticas em territórios, algo que já está em curso em muitas células, como o próprio Clandel Golfo.
Claro, é discutível se esse aspecto já se faz tão presente em gangues urbanas, como, por exemplo, no recente quadro chileno e equatoriano. Certamente, é mais proeminente onde há muitas forças disputando grandes áreas na periferia das cidades ou, ainda, nas chamadas “terra de ninguém”, situadas na região amazônica, próximas às margens nacionais, como a tríplice fronteira entre Venezuela, Colômbia e Brasil.
Em suma, se trata de organizações recentes, a maioria, grupos pequenos, que absorveram da América Central e do Brasil um modelo mais atual de organização interna, mas que se mostram ainda mais capacitadas à internacionalização e à atuação em outras atividades ilícitas, que não o tráfico. Nesse quadro, o paramilitarismo se torna apenas um agravante, com cada vez, maior peso.
Esse é o caso tanto para organizações como o Tren de Arágua e o Clandel Golfo, que tendem a estruturar um esquema de alianças que ainda se define, quanto para as incontáveis micro células espalhadas na região, que introduzem aspectos da instabilidade de conflitos territoriais e de violento domínio sobre civis.
– Texto de: Francielle Cerqueira
– Revista Sociedade Militar