Em um dos episódios da série “A vida secreta das palavras”, publicada pela revista Superinteressante, o linguista Márcio Renato Guimarães, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), traz à tona um fato surpreendente: a língua que deu origem ao português, o protoindo-europeu (PIE), não fazia distinção entre masculino e feminino. No sistema original, que existiu há cerca de seis mil anos, o gênero gramatical separava apenas o animado (vivo) do inanimado (não vivo). Esse antigo sistema se perdeu no tempo, mas deixou resquícios na formação dos gêneros das línguas modernas, como o português.
Neutralidade de gênero: o ponto de partida da língua-mãe do português
O PIE, falado por antigos pastores nômades das estepes da Eurásia, dividia o mundo em dois tipos de categorias gramaticais: animado e inanimado. A distinção não refletia as noções modernas de gênero, como masculino e feminino, mas apenas a capacidade de ação. Palavras que representavam seres vivos – humanos ou animais – eram animadas e podiam ser agentes em uma ação. Já palavras para objetos inanimados, como rochas ou árvores, serviam apenas como sujeitos passivos ou objetos diretos.
Essa divisão simples permitiu que, ao longo do tempo, as línguas derivadas do PIE desenvolvessem categorias de gênero mais complexas, moldadas por influências culturais e históricas. O português, por exemplo, acabou incorporando apenas dois gêneros: masculino e feminino, enquanto outras línguas europeias, como o alemão, mantêm o neutro.
A transformação do animado e inanimado no masculino e neutro
Com o tempo, o gênero animado do PIE evoluiu para o que conhecemos hoje como o gênero masculino em algumas línguas. O gênero inanimado, por sua vez, transformou-se em neutro em idiomas que mantiveram essa categoria. Curiosamente, foi só mais tarde que surgiu o feminino, fruto de uma inovação gramatical. Segundo a pesquisa de Guimarães, essa mudança teria ocorrido com a adição de sufixos, como -ā e -ia, que indicavam pluralidade e aumentativo. Esses sufixos foram adaptados para criar o gênero feminino nas línguas derivadas.
No português, resquícios dessa evolução aparecem em palavras como “lenho” e “lenha”. Enquanto “lenho” é um pedaço individual de madeira, “lenha” representa a madeira em geral, no plural, denotando que o final em “a” possui uma carga de ampliação, um eco da função original do sufixo PIE.
Gênero gramatical e gênero social: um falso paralelo
Guimarães observa que o gênero gramatical não carrega nenhuma relação direta com o gênero biológico ou social, ao contrário do que se pensa. Em línguas africanas, como o kimbundu, de Angola, as categorias gramaticais seguem critérios de forma ou função dos objetos, categorizando, por exemplo, pessoas, árvores e objetos líquidos em classes gramaticais distintas. Nas línguas indo-europeias, o que chamamos de “masculino” no português pode ser considerado apenas uma convenção gramatical.
Outro aspecto curioso é que o próprio sufixo “-o”, como em “menino” ou “lenho”, não é uma marca de masculino, mas uma vogal temática. Segundo Guimarães, o português só possui um marcador específico para o feminino, o “-a”, usado em palavras como “menina” e “doutora”.
Da espécie ao masculino: o papel da cultura no uso dos gêneros
A tendência de atribuir o gênero masculino ao nome da espécie humana parece uma escolha que atravessa diversas culturas, de Roma à Europa medieval. Em latim, o termo “homo” referia-se a toda a humanidade, enquanto “vir” designava o homem do sexo masculino. A palavra latina “homo” se estabeleceu nas línguas românicas para referir-se tanto à espécie humana como ao homem.
Esse fenômeno se reproduziu no inglês antigo, onde “man” designava qualquer pessoa, enquanto “wer” se aplicava ao homem e “wif” à mulher. Com o tempo, “man” passou a ser usado para se referir também ao homem especificamente, reforçando a associação entre a espécie e o gênero masculino.
Uma visão linguística da diversidade gramatical
A pesquisa de Guimarães destaca como o gênero gramatical é moldado por processos culturais e históricos, sem relação direta com o sexo biológico. A língua portuguesa, ao usar o “masculino” como gênero padrão, mantém traços da neutralidade original do protoindo-europeu. Esse entendimento ajuda a desmistificar a ideia de que a linguagem está ligada a construções de gênero contemporâneas e oferece uma nova perspectiva sobre as raízes do idioma.